Folha da minha árvore.




Pois foi bem assim:

Cochilo no finalzinho da tarde, acordar de supetão bem na hora, que era a hora, de dormir realmente. Daí, a cabeça que tá quase vazia, vê a TV vomitar as sangrentas atitudes dos insanos sem alma. Ah, melhor nem ver isto

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Colcha de Retalhos



Na minha avaliação, perder o sono no meio da noite tem se tornado tão habitual que nem me ocupo mais em dissolve-lo. Fico assistindo filmes, documentários, enquanto aguardo, pacientemente, que minha mente se acostume a mudança que estou vivendo e assim, aceite o processo. Daí que, quando a mensagem chegou pelo celular às 3 da manhã, eu a li de imediato:


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Operação O.Pen


Primeiro por causa do calor, depois pela ausência dos amigos, o dia mudo estava um tédio. Coisa mais sem graça, aquele domingo. A turma, há anos tinha se dissipado, e a saudade, atrevida, toma forma no peito. Sentimento besta que não pede licença pra alojar no coração da gente. Por isto ela estava lá, cravada nas lembranças de Chico. Eu quis saber, que saudade era aquela, e a cabeça dele começou a vagar, trazendo prá boca este e aquele momento, que o tempo levou. Delas, solta a gargalhada, os dedos rabiscam sobre a mesa, desenha o trajeto que viveu.

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Eternos, um para o outro.




Tenho dois filhos: um menino e uma menina. Chamo-os de “meus meninos” porque é assim; um pedacinho da minha meninice esta ali, em cada um deles.

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O último desencontro




A culpa de eu amanhecer dormente é da morte, de novo, que veio bater na minha porta.


Pra onde olho tem os amigos dela e estou sem espaço. Lá no meu quarto, a cama fria recebe em vez de mim, a angústia refestelada debaixo do cobertor. Na cozinha, pelo quintal, nos cantos mais miúdos, o silencio no vazio perene. Tem muitos assombros na minha casa e eu não sei mais chorar pra afastá-los. Agora, sou covardia em pessoa. Queria fechar em mim, estar somente pra mim, falar só pra mim. Mas não posso. Tenho que sair daqui e ir lá.

Ir presenciar a amargura da perda, dar de cara com o passado, refazer e desfazer histórias. Enterrar os segredos.

Sei que meu coração vai se partir em mil pedaços ao ver a dor do meu filho chorar sobre o corpo do pai. Um pai que meu menino sempre quis, que marcou muitos encontros e faltou a quase todos eles. Um pai imensamente esperado em muitos natais, muitos aniversários, em todas as suas conquistas. Um homem perdoado pelo que não foi e, mesmo assim, não soube viver isto.


No hospital pediu: “morre não, pai, fica aqui, vamos marcar um encontro de verdade e vê se desta vez você não me dá bolo”.

Mas ele se foi. Deu outro bolo. O último e o mais doloroso de todos.

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A Carta





No chamado de cada um, Alice e Santiago seguiram por outros caminhos. Cada qual tem seu chamado! Ele quer se fazer doutor e ela tem pressa em viver. Um tem que percorrer o caminho, o outro precisa parar para faze-lo. Então, relembrando lá, o princípio desta história, nesta carta, ela se despediu:

“Meu bem,

O rio que nasce lá em cima desce todo animado, é pequeno, só tem um filetezinho. E, pelo caminho, recebe pequenos rios e córregos que injetam bem na sua veia, mais vida, mais água e ele, junto e misturado, vai assim, tomando volume e se formando mais rio!

E o rio que é rio, que é gente feito a gente, cresce, passa por muitos lugares, diferentes essências e jeitos. Vive de tudo; ora com os peixes que vêm nadar pra fazer festa e procriar, ora com os pesqueiros que abastecem a família e o bolso. Jovem, astuto, arrogante, bate suas águas nas pedras pra fazer barulho nas corredeiras só pra mostrar virilidade. É resoluto, brilhante, inteiro, vistoso! E vai seguindo, seguindo, ora em linha reta, ora pelas curvas do caminho. Vai que vai, apaixonado!

Mas com o tempo, ele se torna mais brando. Começa levar aquele jeitão manso, talvez refletido pelos enigmas nas histórias que colecionou desde lá de cima. Feito gente crescida derrama lágrimas de amor e de dor, como as mães que festejam a alegria dos que acabaram de chegar e que choram pela saudade dos filhos que partiram. É nobre como o homem que se debruça na varanda do tempo pra contemplar e desaguar as pequenas grandes facetas da sua história, aquelas coisas que não se explicam, mas acontecem. Quando entorpecido de paixão, clama pelo amor que se foi... O rio é gente, gente como a gente. Encruados nas suas águas, tá cheio de histórias. São vidas. Muitas vidas!

Daí vai descendo, mais pra lá, e ainda brinca no sacolejo, às vezes até faz onda, mas descobre que já é tão grande, tão pesado e que não precisa e nem consegue mostrar tanta força. Nesta hora, alguém lhe conta que em breve vai virar mar.

E ele se pergunta: mas... mar; o que é o mar? Uma imensidão esverdeada e brilhante que vai dar nos quatros cantos do mundo? Como é ser imenso? Não fazer parte de nada e ser tudo? Então tem medo. Abre os braços, na tentativa desesperada de se segurar pelas beiradas, de se ater ao tempo, de voltar às corredeiras, de abraçar a lua e sugar o sol. Quer parar. Contudo, suas águas desfilam para o infinito. Matas ciliares já não existem mais. No fundo, se sente enfeiado dos lixos que recebeu. É na tentativa de se agarrar, inunda cidades, vales, vilas, lugarejos. Mas, pra onde correr? É inútil. Não tem como parar a coredeira. Não tem como freiar a vida e parar o tempo. Não tem como ficar rio.

Nesta hora, resignado, vai complacente. Fez o que fez, leva a vida que levou, carrega o que amou. Por isto, ao final, manso e silencioso, se entrega ao mar. Daí que, o que era pra acabar e se perder, se modifica: o Rio vira Mar.

O mar, meu bem, coleciona histórias e as guarda para si. Mas o rio fala, porque não quer passar em branco entre o céu e a terra. Então, neste fluxo, faço-me olhos do mundo nas histórias que impregnam o rio. Não pra obter respostas acerca dos mistérios, mas para viver rio e não trair a vida, pois se me nego, abandono os talentos que Deus entregou a mim e em mim, espera. E só assim não serei vencida."


Depois assinou, pura e simplesmente,


"Alice.”

E saiu.


Foi assim, desse jeitinho assim, que se separaram.

De longe, bem de longe, os olhos brilham e se despedem. Os cílios que um dia brincaram um com o outro, mudam de direção e seguram o que aperta a garganta. Outros rios virão, aqui ou noutra curva em que se fizer caminho até o fim da jornada. E este continua sendo o segredo só do mar.

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A Cara do Mico



Logo cedinho, o bicho de cabeça pra baixo, bota toda cara grande na janela da cozinha e, com aqueles olhos esbugalhados, entretidos em bisbilhotar, dá de cara comigo. O susto deste imprevisto fez com que ele ficasse bestificado, estático e o queixo lhe atingesse o peito. E só saiu do transe após ouvir a gargalhada que soltei da cara dele. Saiu correndo, trombando nas vigas, no ar, em si mesmo. E se eu ri tanto, foi por me lembrar que o danado do Mico tinha a mesma cara do tal sujeito de ontem.




O tal sujeito de ontem é violeiro e cantador dos bons! Interpretava as músicas de Zé Ramalho e começava até bem, mas, lá pela centésima pinga, ficava fazendo somente o gesto com a boca, sem soltar um som sequer. Daí que, nos bastidores, ganhou o apelido de ZeCaralho. Apesar da pouca idade, Zeca tem os cabelos totalmente brancos. Magrelo, estatura mediana, sem os dentes da frente, vivia por aqui, de bar em bar, filando de cigarro à tira-gosto, de cachaça à parati, até que um da rua, compadecido, lhe retirasse da calçada. A família já tinha cansado de falar, de pedir, de mostrar; então bebe, praga ruim!


O Zeca, nas horas de lucidez, era um excelente pintor. Daí que fazendo um bico daqui outro dali, foi parar na casa de outro sujeito grisalho, vendedor de mudas, apreciador dos mistérios dos cristais e das estrelas, que falava com seres espaciais e mantinha a filha única na França. Segundo soube, foi num destes encontros intergalácticos que ele foi informado dos números certos da sena e ganhou sozinho, com uma única aposta, a maior bolada da época. Depois desta prova, quem sou eu pra questionar as naves espaciais!


Tornaram-se amigos e apoiado por ele, Zeca foi pra São Paulo se tratar. Hospedou-se em uma das casas que este mantinha pra a filha, em suas vindas ao Brasil. E lá fez bonito: trabalhou pra agradecer a ajuda. O tempo passou e eis que surge, o agora José, com dentes perfeitos, desfilando de carro importado pelas ruas da cidade e como turista, câmera na mão, filmando o rio, passando pra lá e pra cá de bermuda comprida, camisa estampada e meia três-quartos. À tira colo e sob às benção dele, a bonita filha do Cristaleiro.


Num domingo ensolarado, o Cristaleiro morre: infarto fulminante. Os dois, Zeca e namorada que estavam lá pelas bandas da Europa, levaram quase três dias pra chegar aqui. A esta altura do campeonato é Zeca, digo, José, quem administra os bens da família. E até onde se consta nos laudos do cartório, das portas de rua e dos botequins, o cara não cometera um só deslize, não se deixou levar seguer, por uma proposta indecorosa! Agora tem porte e anda de cara limpa e peito inchado. Uma chance de ouro! A moça é bem criada, carinhosa e orgulhosamente desfila de mãos dadas com ele pelas ruas da cidade em fofoca, numa demonstração clara que o ama e o respeita. Às vezes era isto que ele precisava. Alguém que confiasse nele. Que apostasse nele. Que saiba dar valor! E tão felizes estavam que o casamento foi singelo também. Nada de ostentação, nada de barulho. Tudo na calma e na paz.




Ontem era dia de fazer matéria e eu estou, há coisa de um mês, na função de cinegrafista junto com Anderson. Cubro o que, inesperadamente, não se adaptou e foi embora. Também precisamos de uma repórter. Por isto, ao fazer as cenas, observo com muita atenção as pessoas ao redor, pra ver se reconheço nelas, o que procuro. E foi num destes zoom que flagrei Zeca, detrás da porta do carro, dando mais uma golada na marvada. No olhar sorrateiro, o rosto gira para um lado e para o outro, vrupt, pinga pra dentro. Depois, limpa a boca com a manga da camisa, sopra o ar, ajeita a língua, faz massagem nos beiços, masca um cravo e volta pra roda cheia de amigos. A cara, seríssima! Acompanho, duas, três vezes o mesmo percurso dele, no carro.


Neste ínterim, minha adotiva Raimunda, com seus parafusos a menos, esta no meu encalço, porque um delegado de codinome Don-Juan-Júnior, inventou de dizer pra ela que estou grávida e são quatro crianças. Desde então, nossos encontros tem sido pedantes; ela e sua cabeça desmiolada não saem de perto de mim, chorando e seguidamente fazendo a mesma pergunta: você vai casar com ele? São quatro? Cinco? Hoje não me irrito mais. Deve ser porque tive um ataque descontrolado de cólera na vida, e este foi semana passada. Estou limpa de tudo. Será difícil alguém me tirar do sério, por um bom tempo. Ela desiste, se afasta resmungando e eu, que conheço a peça, somando dois mais dois, chamo Anderson e falo o que podemos esperar. Ele ri, maliciosamente, e nos posicionamos. E é agora é que você tem que se lembrar da cara do mico, lá no início da história.


Lá foi Raimunda, xingando e chorando. Não quer saber mais de mim, tou de mal, acredita na gravidez quádrupla. Quer me mostrar que tem outra amiga. Pernas tortas, mãos na cintura, foi direto e reto na roda de ZecaCaralho. Cutuca o ombro da moça recém casada: Cê tá esperando neném dele? e aponta pra cena bagaceira que finge mexer no carro.


A talagada nem tinha chegado na garganta, quando os olhos de toda roda o encontraram. O impacto, o ohhh, o silencio. Acho que nenhuma boca voltou pro lugar. A cara dele, a cara do mico. Tal qual o olhar. Tal qual o silêncio; a paralisia. Mas ele não corre, quando ela se aproxima. Abaixa os olhos, balbucia foi só uma. Mais tarde, neste mesmo dia, eu os vi; ele de violão em punho abrindo e fechando a boca sem som, talvez entoando uma musique de ZéMico, só pra ela.

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Os Três Tempos



A areia quente sob os pés, a mente fervilhando perguntas, coração batendo forte no peito. Não sabia dizer o que sentia. Se raiva, se amor, se rancor. Muita coisa dentro. Excesso de tudo. Mistura de só e junto. Verdadeiramente misturado, pensou. A noite passada em claro, o corpo abrasado ao lado do travesseiro vazio. Por isto saiu de casa quando o dia ainda abria os olhos. Precisava trocar passos com a realidade, não se precipitar no compasso e assim, deixar o novo tempo nascer.

Como num parto, a contração do pensamento embaralhado fez com que ficasse tonta de desgosto. Esmurrou o ar. Quis soltar no grito, mas as mãos carregadas do vazio prenderam a boca.

Mergulhou de ponta no rio.

Afundou de cabeça na água e lá, imersa, se embaralhou no turbilhão da sua correnteza. Quem de nós dois vai explicar isto? Nas veias, o sangue gelado, no peito palavras escritas nas conversas. De si, a mente que teimava e relia sem parar o que não era pra ser visto. Ecos pra todo lado. As palavras no bate-volta.

Caraca! Queria se livrar do incomodo, mas pra isto tem que entender ou aceitar. Devia mostrar pra ele. Mas, falar por falar é conversa jogada fora. Não quero ser convencida de nada. Tem evidências demais. Quer afogar o martelar na cabeça e por isto fica debaixo d’água até não ter mais ar. E quando emergiu, ele estava lá, sentado na areia.

- Se demorasse mais um segundo eu ia te puxar pelos cabelos – foi o que disse quando se sentaram na praia.

Quem diria que o mesmo homem que anos atrás formou família e disseram “sim” diante de uma igreja cheia de convidados, hoje, a protege de uma outra história. São amigos ligados por um presente em que não tem dúvidas; apenas começo, meio e fim de um casamento que não deu certo. Foram cada qual passar noutra estrada, mas resguardaram a base com que se fizeram pessoas. Sentados diante das corredeiras do rio, ele nada perguntou e ela nada disse, porém deixou que ele soubesse por quem era o seu descontentamento.

- Perder é, as vezes, ganhar, sabia? Deixa como está, segue seu caminho.

Não existe esta coisa de perder ou ganhar, isto não é um jogo , tentou explicar mostrando o avesso das coisas, a frase na contramão. Não queria desculpas pra ver o que tava na cara e por isto contou a história toda, tim-tim-por-tim-tim sem refletir uma visão pessoal de dona da verdade.

A história começou quando o causador do descontentamento chegou dizendo que estava ali pela metade. E como os gestos falam mais que as palavras, no correr dos dias, mostrou que nem o restante da outra metade se fazia presente. Criticou a cidade que antes era surreal e intrigante, reclamou e encheu de defeitos o que antes era perfeito. O material de trabalho entregue a ele mal foi desvendado. Ficou ali na caixeta a disposição do olhar preso em outro mundo. Um dia falou que tinha medo de não dar conta e ela não quis convencê-lo de que a capacidade esta na vontade. Ela quer mudar, ta de saída, mas ele se diz bagagem e não pessoa. E pelo que sabia, no que guardou pra ele, o que desvendou pra ele, o que entregou pra ele foi estilhaçado no ar, nas palavras gravadas na tela. Eu não me importo com que os outros digam, mas me importo com o que ele diz pra os outros, finalizou. E o que ela ouviu, leu e escutou foi o que fez com seu coração perdesse a cadência.

- Perdoa os enganos, festeja o novo tempo, disse o então amigo na despedida.

Ela, assim, aceita que em histórias de amor não há culpados, nem pecadores. Há o tempo certo de cada um. Agora guarda em uma caixinha as fotos, as histórias, os apontamentos. Retira, delicadamente do computador, as lembranças. Pensa no que foi bom e se abastece disto. Suga do ar as delícias que um dia viveram e manda pra ele, seu melhor beijo diante de uma estonteante lua redonda no céu. Depois, quase que em oração, balbucia palavras ao homem formidável que amou e deseja verdadeiramente que viva em paz. Sabe que não existirá remédios pra nostalgia que virá, e por não querer esperar sentada, aceita o convite engavetado para ir dançar.

- A noite é uma criança – brinca com o novo tempo que nasce. Depois se surpreende às gargalhadas ao descobrir que o homem que a conduz no dois pra lá, dois pra cá tem o mesmo nome e sobrenome do que acabou de partir. Vida atrevida! Agora faz piada com a minha cara!

E com os olhos cerrados diante do novo tempo, se deixa apertar pela cintura, com a certeza de ter transformado o que pareceu tempo perdido, no mais sublime de si, ao se ver por inteira, como a mulher que vive, viveu e viverá um grande amor.

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O Bem do Bem









Levantou, sozinha, olhou para o espelho. Tô bem melhor, pensou. Tomou banho, sentou-se à mesa, provou o café, olhou pro céu, depois pra fora e viu o quintal "será que vai chover? Vai nada, o sol tá muito quente, aquela nuvem escura vai sair dali."

Saiu.

Saiu pra resolver o básico, normal de toda semana: compras de supermercado, pagar contas no caixa eletrônico, trocar óleo do carro, calibrar pneus. Fez tudo automaticamente. Já estava no caminho de volta pra casa quando o pensamento puxou: 


Casa? Pra quê casa? Hoje é sábado! 

Meio do caminho, relógio marca meio dia e meio,  barzinho à esquerda, tá cheio, olho encompridado lá pra dentro. A visão foca: tem gente da família aqui! 

Estacionou e desceu. 

E o jogo foi rápido. Porque nem a tampinha da segunda cerveja aberta tinha quicado no chão quando o caso foi despejado.


Ele quer indenização?, interpelou, engasgou. 

Sim, ele era amigão, ajudou um tantão, quer receber os ouros deixados pela morte da irmã, da mãe dela, aquela, a preferida dele, que pagou as contas dele, inúmeras, de água, luz, telefone, carro, barco e feira.  Ta tudo configurado!

Daí, vem outra cerveja. 

Abre não! 

Mas abriram. 

Agora bebe, seu copo tá cheio. Mas e ai? 

A história continua. Ela não concorda. Mesmo assim, quer ouvir. 

E daí?

Pagar por que foram amigos? 

É sim, coitado. Depois que ela morreu, ele ficou na miséria, nem comida tem mais lá. 

Coça a cabeça, não entende. Até lembra. Ele chorou na despedida. 

Era mentira! 

Ele se despedia dela ou do que ela representava financeiramente pra ele? quis saber. 

Claro que era dela! explicaram, você não entende, nunca passou necessidade na vida! 

A cerveja tá quente, a mente ferve. Não quer mais saber daquilo, nem de estar ali. Levou paulada na moleira, tá zonza. 

Bebe ai! alguém ditou. 

De novo? 

Ela não quer: Não, tá quente!! 

Depois, ah, tinha mais, alguém assumiu o comando de tudo, você nem tem que se preocupar. Mandou dizer que não te faltará nada. Como assim? Não tem assim. Acabou. Acabou? O que acabou? Mais cerveja, de novo, aberta. Quero mais não, tira o copo. Num que o  quê? Você sempre gostou! A voz continua; preocupa não, ele vai cuidar de você. Ele quem? Quem falou que eu quero que ele me cuide, assim? Esurdeceu. Agora só escuta o assombro dentro de si. Ele urra. De fora é resto, é boca que abre, boca que fecha, boca que mastiga carne e baba gordura. Estão gargalhando, tem dente cariado. Tudo é dinheiro. Tudo fachada. O bem de cada um sumiu. O brio da cara, da vergonha, da honradez? Sumiu ou nunca tiveram e eu nunca vi! Vida banalizada, perda do maior valor, tou com enjoo, almas vendidas, vergonha é piada. O da frente se isenta: não me meto nessas coisas, problemas seus ai...

Agora tá zonza,  se levanta da mesa. Falta de ar foi só o começo no disparar do coração. Pra que ficar mais ali? Cadê meu ar? Despediu de jeito cordial, parecia bêbada. Vai pra onde? pergunta o da frente, fica aqui, você não dá valor a família? De raiva, fez que riu. Mostra os dentes. Saiu.


Foi fazer via sacra: bar de Toninho, de Babau e de Silvano. Nenhum serviu, nenhum coube, nem ela e nem as informações entaladas na goela. Nem  bebida mais forte desceu. Melhor parar debaixo do pé de manga, mais perto de casa. Estática, abobada, corpo apanhado, parou. Quer ar. Fica calma, respira fundo. Puxa o ar e solta. Jeito de fortalecer o coração.

Que bicho é aquele? De novo, o Mico. 

Tinha birra dos micos, mas era ele que estava lá na hora que música tocou, por que não vai pra casa? pensou, sai daqui!, gritou. 

Mas a casa não cabe. Melhor ficar ali. Se acomoda. Do rádio sai a voz que canta; é dele seus pensamentos agora. Suga o cheiro das lembranças. Tem que ter um restinho da poesia dele, é ele, ali, no cheiro da saudade, no apoio, nas palmas das mãos. 

Suga, respira e aspira. É alento. Não esta sozinha, tem sonhos, quase chora, pára, controla, pede e repete; é a alma quem diz. A música no rádio, nossa música! Agora sorri.


O grito que é surdo, engole, quer silêncio. Tá sozinha, não precisa parecer forte, por isso chora de verdade, de boca aberta e mão no rosto. Deixou a mulher pra lá. Agora é menina assustada. Abocanhada. E o celular que não pára chama seguidamente, tem gente querendo saber disto e daquilo, tem acidente na estrada, gente que foi presa, por que você não veio cobrir? Mas a jornalista não liga e desliga, tem que pensar, tem que se acalmar, é raciocínio que se perde. É menina despida.

Mas continua aquela insistência no telefone que toca um, dois, depois outro chamado, e assim vai e ela atende uma por uma, entre um engasgo e outro, não posso, não vou, tou longe, até que, quem é você? rosna com a boca no telefone. “Sou eu, meu bem, seu bem! Estou sentindo daqui, o que tá acontecendo?”.

Estofado do carro fica macio, corpo amolece. E com sotaque batido a voz amassa: vai pra casa! É ordem vestida de pedido. Então, se acomoda. O abraço vem. O beijo sussurrado colhe. A voz orquestra ordem na dor. Respira e aspira. Um milhão e seiscentos e oitenta e seis mil passadas daqui lá. Só isso? Dá mais!! Aceita e ressente. Tá longe mesmo. No curto silencio só falou: é você, meu bem? Enquanto escutava ficou leve e até deu ei pro infeliz do Mico. Até que ligação cortou. Caiu. Oh dó, acabou...

Olha em volta. O momento exato, o segundo que retoma o ar, no mundo que é grande, no céu que é azul e escuro, onde a lua que é cheia e graúda, o corpo, ahhh, suspira, o corpo que torce e contorce, que ainda dói na garganta abafada, afrouxa e até se refaz ali mesmo, por que não tá sozinha não. Ah, não tou mesmo não, viu? 

E isto é um ponto pra seguir. Ajeita os olhos, já dá pra sair do carro, levanta a cabeça, espana a saia e vai. 

Ta fazendo o que ai? Paixão, não, mas eh saudade, hem?, zomba o que via tudo do murinho. 

É saudade sim, muita saudade do meu bem.

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Nos braços de Santiago




Quando Santiago deixou Alice em casa, o sol já espalhava claridade na terra. Tinham passado toda noite no alto de uma pedra, bem em frente ao rio. Isto depois de um terere danado, por causa de uma briga feia que acontecera na rua de baixo. Uma discussão que acabou em murros. Daí, que quando chegou na casa dela, bem de tardezinha, foi logo dizendo que andava cansado, exausto da vida, inundado pelo trabalho chato e pedante e, ainda por cima, arrasado por ter cedido aos impropérios de um bêbado e ignorante chamado Tonhão Cru. Alice tinha os olhos redondos de chorar, não tanto pelos sopapos trocados nas palavras mal ditas entre os então inimigos, mas pelo medo de pensar que seu amigo estivesse mortalmente ferido. E ao vê-lo ali, são e inteiro, colocou a mão no peito, como se quisesse segurar o coração que vivia doido pra descer do mundo.
Santiago tocou na ferida:
- Como foi o resultado do médico? O que ele disse desta vez?
- O mesmo. Meu organismo não reage – e querendo atestar pelos braços- olha só, nem tem mais a onde furar. Agora é esperar e contar com tempo.
- Deus é o tempo, minha querida, o grande Papai do Céu quer ajudar você. Por que não se entrega a Ele? - respondeu ao ver as manchas roxas espalhadas pelos braços e pés da amiga. E, impetuoso do jeito que é, foi logo jogando o chinelinho na sala: “calça ai e me dá sua mão, vamos sair. Ninguém espera por uma coisa destas, sentada.
Alice e Santiago são amigos e conhecem muita gente. Das esquinas de cada espetáculo humano aos becos de cada um. Mas nada disto importa. Ali, um precisa do outro. E por isto foram se sentar na mais alta pedra, cara a cara com imensidão de uma nuvem fofa, que mais parece uma banheira cheia de espuma.
É o canto de Santiago. O lugar onde se deixa quando está perdido. Agora, trazia Alice pra falar dos mistérios. E quando a grande nuvem se dissipou, ela disse:
Santiago, você já observou o Rio? Lá em cima, na nascente, ele vai descendo todo animado, é pequeno, só tem um filetezinho. No meio do caminho outros pequenos rios e córregos vão injetando mais água nele e assim, vai tomando volume e se formando. Crescendo, passa por muitos lugares, com diferentes vidas e jeitos. E ele vive de tudo; peixes que vêm nadar pra fazer festa e procriar, pesqueiros que abastecem a família e o bolso. Suas águas batem nas pedras, fazendo tanto barulho nas corredeiras, só pra mostrar virilidade. Está resoluto, brilhante e feliz. Então vai seguindo, agora mais brando. Começa levar aquele jeitão manso, talvez refletido sob os enigmas que colecionou desde lá de cima. E, descendo pra lá, ainda tenta se sacolejar mais, fazendo até onda, mas descobre que é tão grande, tão pesado e que já não tem tanta força, quando alguém lhe conta que em breve vai virar mar.
E ele se pergunta: mas o mar; o que é o mar? Uma imensidão esverdeada e brilhante que vai dar nos quatros cantos do mundo? Como é ser imenso? Não fazer parte de nada e ser tudo? Ele então tem medo. Nesta hora, abre os braços, na tentativa desesperada pra se segurar nas beiradas. E mesmo não querendo, corre desembestado, porque as matas ciliares não existem mais. No fundo, tá enfeiado dos lixos que jogaram nele. É inútil e não tem como parar.
Nesta hora, arrebatado, se deixa levar, está complacente. Manso e silencioso, se entrega ao mar. Daí que, o que era pra acabar e se perder, se modifica. O Rio agora é mar também. O mar tem sua beleza e seus mistérios. Mas, o maior deles é ser feito de muitos Rios e ainda assim se manter salgado.
- Todos nós somos um Rio, minha querida, e o que é o sal, senão tempero da vida? As quedas estão ai, não tem receita pra mudar isto, mas você não pode deixar que elas sejam pra sempre – disse ao colocar o rosto dela no peito e enlaça-la.
Mas não pense que exista silencio naquele abraço. O silêncio tem voz, a gente tem que saber ouvi-lo. E nela, Santiago foi a maior voz que calou no coração de Alice. Não para falácias de auto-ajuda, mas para lhe entregar no mágico amplexo, a energia para que se refizesse. Ali, provavelmente, o Rio que se impregnou da amizade de um homem e de uma mulher, até aceitou sua condição de ir morrer no mar. Isto, porque sabe que amigos têm o dom de curar, não as feridas - estas são para médicos e remédios - mas o que as ocasionou.
Ele sumiu na rua. Alice abre a janela e o céu se enche de luz. Nasce, esplêndido, um novo dia. Agora, é hora de recomeçar, porque o tempo urge e o mar é bem ali na esquina.

Esta crônica foi escrita para todos os amigos, reais e virtuais, que se dedicaram em coração à Alice. Em especial ao meu amigo nada virtual, aqui representado pelo nome de Santiago.

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