Acorda Alice!


foto: Alice e o espelho




Alice vivia de casa pro trabalho, do trabalho pra casa. Já fazia tempos que abnegara de uma série de regalias, porque sua alma estava triste. Vivia assim, criando pretextos pra abrir os olhos pela manhã e reencontrar uma estrada. Foi quando bateram no portão.

- Seu nome é Alice? – perguntou diretamente
- E você, quem é?
- Meu nome é João. Quero ser seu amigo.

O fato de ele ter batido à sua porta não foi exatamente a questão que mexeu com ela. Nem por ter sido o primeiro a fazer isto. Foi o jeito dele de ser. João a presenteou nas coisas em que mais admirava em uma pessoa: o português correto, o raciocínio coeso, a direção segura no que fazia. Conseguiram se inteirar um do outro. E em pouco tempo as conversas se tornariam mais intensas e os encontros, com horário marcado. A expressão dos sentimentos também. Conseguiam dizer “hummmm” e ali ser tudo.

Era caso pra se sentir. "Existe uma emoção no ar", diziam entre si. Os dias vieram realmente nascer para Alice e com eles, todas as cores do arco íris. Posso até dizer: foi amor a primeira palavra.

E o que a perspectiva de um afeto não faz nas cabeças das pessoas? Que derrame o primeiro suspiro àquele que nunca viveu este dia. A cabeça fica revirada, os problemas tornam-se pequenos e o que era sóbrio, passa a inexistir. Alice prendia o ar, para que os pés lhe assentassem no chão, mas o coração, feito carruagem, estava desembestado. Agora era se permitir ir mais adiante.

Ela achava que a inteligência de João era por demais aguçada. O homem era perspicaz, sabia o que queria. Muitas vezes acreditava ouvir o pensamento dele, querendo passar palavras, ir direto ao ponto. Noutras, o assunto desviava, mas ele se controlava, sem perder a direção, levando Alice pelas mãos, delicadamente, ao “x” da questão.

Marcaram de se encontrar, naquela noite, às sete. Ele chegou primeiro e escreveu sua aflição: “você está 27 minutos atrasada”, e continuou: “será que espero?”, Depois começou a contar: “43 minutos de atraso”, “44 minutos de atraso”, “45 minutos de atraso”, “estou ficando com saudades”, e foi o reclamar no minuto 64, que ela entrou. “obaaa... um min”, respondeu ele, e na cabeça de Alice, João fora fechar a porta.

- E esta noite? Você sonhou comigo? – perguntou
- Não - respondeu - você já é o meu sonho. Não preciso dormir pra ter você dentro de mim.

Dali pra frente a noite foi intensa. A conversa tomou forma arrebatada, os dedos, no teclado, cochicharam volúpias e sentimentalismos. E foi querer se desvendar que Alice enveredou por um chão antes apagado e as lembranças brotaram feito sal na sua carne. Tudo porque contou pra ele um segredo que nunca confessaria. Dai, perdeu o fio da meada. O tempo fechou e as chuvas desceram com força, balançando as janelas, arregalando o céu em prata. Ele pediu, ela ligou:

- João - disse tentando esconder o choro - a chuva esta forte e tenho medo.
- É você Alice? - atendeu ele - sua voz... você está melhor?
- te liguei mais para que escute o barulho dos trovões - foi só o que disse.

Aquela foi a primeira e única vez que os amantes virtuais se falaram. Depois disto, o tempo fechou bravamente. Do céu vieram os raios, trovões, ventania, o apagão escureceu o Brasil e a tela do computador. Sozinha, em sua cama, Alice se entregou a João porque já não tinha medo.

Não posso dizer que Alice achou aquilo normal. De manhã, bem cedinho foi perguntar no Google que sensação era aquela. Se natural. "Sim, é natural. Hoje em dia, o mundo virtual funciona como o real", foi a resposta quem a encontrou.

O tempo se encarregou de modificá-los. Alice pensou nas fotos. Chegou imaginar a cena do dia em que estivessem cara a cara e não se agradassem de si. Foi refletir no espelho as formas reveladas no jpg de 900x600 pixels e atestou; sim era ela mesma. Não havia mentiras nem photoshop. Mas alguma coisa aconteceu, de certo, para que João se portasse de outro jeito.

João diz:
*que jeito?
Alice diz:
*seco
*direto
*curto
João diz:
*o msn exige objetividade
*não estou seco.

Depois deste dia, o trabalho e as obrigações da vida real a afastou da tela. Foi encontrar João, um dia depois, completamente modificado. Ele a acusou de modos que ela não sabia responder: “sua mania de”, “suas atitudes”, “lá vem vc...”. a intitular-lhe de estilos e coisas jamais faladas. "Como pode julgar, insultar, se nem vê os meus olhos?" foi o que disse pra si mesma.

Agora, ela acha que ele a deletou. Ele acha que ela fica escondida dele. Assim, se perderam no céu virtual até que a realidade, se quiser, os encontre. Mesmo porque, no virtual, os arquivos se sobrepõem rapidamente e fica difícil refazer tudo de novo. Melhor seguirem. A vida esta indo por ai mesmo. Até já disseram que, em um futuro bem próximo, será assim: sonhos, desejos e perdas em um só clique, na velocidade dos megabytes.

Enquanto o mundo virtual gira deixando toda terra meio que bêbada, o sol abre mais um dia e enche as veias do real: acorda Alice, este sangue é seu!

Leia mais

O coveiro, o rio e eu




Depois de duas mortes, ainda mais daquele vulto, há toda uma reconstrução a ser feita. E não se volta pra estrada do mesmo jeito que se foi. Com a batida, nossos pedaços caem tão longe e se espatifam em bocadinhos tão miúdos, que fica difícil reintegrá-los na sua forma original. A palavra “nunca” toma forma de realidade e vai para onde os sonhos morrem. Assim, desse jeito assim, fechei a casa, as minhas portas e janelas e lá me consenti por tempo indeterminado. Perdi o tempo...

Alguém bateu no portão. Uma, duas, três vezes. E no dia seguinte no mesmo tom. Fui espreitar: era o coveiro.

O intitulado enterrador de corpos da cidade é um velho subordinado da profissão. No dia do sepultamento da minha mãe foi protagonizador de uma cena bizarra quando, escorado sobre o caixão, parou o trabalho e debulhou: ganhava pouco, o prefeito era do mal, trabalhava sem condições e a família? Tudo na maior miséria! Depois, de dentro do túmulo, resguardado por estátua de um anjo de bronze, gritou:
Tem uns ossinho aqui! Cês quê vê?” e saiu de lá com um pedaço de pano na mão: "Era da vó docês?" No final apontou: “botei tudo naquela quina ali, oh!”. O conversê só parou quando, convocado no ouvido, levou umas notas de real pro bolso. Mas, queria mais.

- Tá cheio de mato lá – disse chupando o dente – mas arranquei tudinho.
- O senhor quer mais dinheiro, moço?
- Esse é outro serviço, dona. Agora vale 30 real. E mais 10 por mês pra eu molhar lá todo dia.
- O prefeito falou que não devo te dar dinheiro não – menti ao dar-lhe as costas.


Mas foi só entrar, que a raiva veio de cheio. Rodopiando pelos cômodos da casa,entrei e sai de tudo quanto é canto. Já não cabia nem dentro do quarto! Sujeitinho besta, achando que é dono! E no meio deste pensativo ruminante, decidi que a partir dali, seria eu a zeladora do túmulo da minha mãe. Portanto, era clarear o dia que - de regador verde, boné e óculos escuros - lá estava eu, a caminho do cemitério.

O Jardim da Saudade fica à poucas quadras da minha casa. Escolhi fazer o trajeto a pé,pra tomar ar, pegar o fôlego adormecido. Mesmo indo silenciosa, sem nem olhar pros lados, com o tempo ficou difícil não reparar nos olhares intrigados, nos cutucões nas esquinas, nas perguntas de curiosidade: “Uai, cê fez horta?” Mas valia a pena. Lá, em meio às lembranças, extorqui a minha saudade de outras formas. Eu não sabia, mas ali começava a dar os primeiros passos pra fora da hibernação.

Por outro lado destas minhas idas e vindas, tinha o coveiro que não esperava que eu fosse reagir assim. Primeiro, deu pra ficar me observando por traz dos outros túmulos. Depois, a chegar antes de mim e a ocupar as torneiras onde eu enchia o regador de água. Passei a dizer Bom Dia! e ele resmungava qualquer coisa. Voltei a usar fones com as melhores sonoridades musicais. E ele interpelava o caminho. Desviei-me da sua sombra, quando ele se aquietou na butuca.

E eu era implacável. Não faltava nem no domingo. Descobri que cemitério não dá medo e até passei a cumprimentar os mortos, assim que chegava. Às vezes cantarolava e ensaiava uns passinhos de dança, entre um túmulo e outro. Cheguei a pensar na possibilidade de ficar “amiguinha” do moço, afinal, perdão existe. Sim, podíamos ser amigos e um dia eu ia passar aquela bola pra ele. Mas não esperava pelo que viria a acontecer.

Naquela manhã eu fui me adiantar. Viajaria no dia seguinte, portanto, tinha que caprichar na aguação. A grama estava quase toda verdinha. As flores, plantadas por mim, nos nove cantos, já estampavam brotos. Sim, eu me sentia feliz ao ver que, efetivamente, ali surgia vida. Porém, naquele dia, algo estava errado: o local fedia... E no fim da viagem, assim que desci do carro, o contra-golpe veio por um terceiro sujeito que destilou sussurrado o ocorrido: o coveiro jogou veneno na sepultura da sua mãe.

Na passada apertada, mesmo trêmula, caminhei até o cemitério. O coveiro estava na porta quando entrei. E lá, bem no cantinho do muro, pude ver o ato devidamente comprovado: os tapetes de grama amarelados e revirados e somente duas das pequenas mini-árvores de flores, inteiramente secas e sem nenhum botão, tudo devidamente pulverizado por veneno pra matar mato! Eu tive medo quando ele olhou pra mim e sorriu.

Diante da imensidão do rio, pela primeira vez, eu chorei de verdade. Queria cair naqueles braços, deixar-me verter na imensidão do azul, das cachoeiras, nas corredeiras. Aquelas águas eram minhas. Todas. Chorei por minha mãe, por meu pai, pelo coveiro e por mim. Mas o rio me disse pra eu não ligar pra aquilo. Mostrou-me as pedras que seguram as águas nas cascatas e logo mandarei colocar ardósia no lugar da grama morta. É só parar de chover. É só eu parar de chorar. Amanhã deve nascer o sol.

Moro no mundo, porém, ele sempre me surpreende.

Leia mais