Na ponta dos dedos




João saiu batendo o portão, depois que Alice mostrou pra ele a sua versão da história.

“Deplorável, o ser humano” foi como se expressou. “Sou um homem de conduta ilibada, não sou menino como escreveu. Diz pra eles que você é sem educação e quando entra não cumprimenta ninguém. Diz também que é insegura.” E antes de lhe dar as costas, soltou a hermenêutica sobre os dois lados da questão; ação e reação. Saiu assim, pisando duro, falando de coração magoado e com o peito cheio das raivas trincando-lhe os dentes. Escreveu “bye” e se foi.

Alice ficou atônita, estagnada diante daquelas interpretações na tela. Por quê tanta grosseria? Tomou litros de água rodando de um lado pro outro na tentativa frustrada de ver a situação com os olhos dele. Achou melhor ir lá e apagar “belo” porque perdera o encanto e “menino” porque ele só queria ser o homem sério. E ia desligar o PC, quando o MSN piscando, chamou-a de volta:

- Arruma as suas coisas, você vai fazer matéria no Rio – disse o coordenador.
- Quem?
- Não é quem, é o que. O cara vai fazer um documentário. Fechei as entrevistas com ele. Você é boa nisto. Fica esperta, a tensão elétrica lá é 220 Volts
- Você quer que eu vá pra Rio de Janeiro?
- Isto! Mando o carro te pegar daqui umas 3 horas, pode ser?
- Desculpa chefe, mas eu não vou não. Não sou de cidade grande.

E no você vai, eu não vou, a conversa que rendeu metros de tela, fechou pro norte, porque na tarde seguinte Alice estava dentro de um minúsculo avião à caminho de Cabrobó, cidade do sertão do estado do Pernambuco e sem nem imaginar o que aprenderia em apenas dois dias.

Lá, onde sol nasce parecendo querer partir a terra ao meio, Alice revisou o roteiro que consistia no depoimento de antigo morador: de como vivia do rio, traços da sua vida, a transposição do São Francisco, enfim, a rotina. Então, de câmera, protetor solar e baton, subiu na rural e foi atrás do tal sujeito. A poeira, numa combinação arrasadora de suor e creme, fez com que os primeiros minutos de estrada trouxessem o arrependimento concreto por não ter aceitado girar pelas ruas e mares do Rio de Janeiro. Estava martelando isto na cabeça, quando aqueles dois meninos, surgindo depois da curva, fizeram sinal pro carro parar.

- Dona, leva a gente ai – pediu o menino ofegante – só até na próxima porteira.

Dois garotos, de no máximo uns 10 anos, estavam andando a cavalo. Alguma coisa tinha assustado o animal que, no pinote, mandou os dois pro chão. Com o tombo, o que estava na garupa, torceu o pé e o companheiro já vinha carregando-o nas costas sabe-se lá, há quanto tempo! Detalhe, o que carregava o machucado era cego.

- Pra que médico? Gasta isto não. Só torceu - disse a mulher na casinha da roça. – amanhã ta bom de novo. Vou fazer um chá pra ele beber. Poe umas erva ai em cima desse pé e fica certo. Assim, não vai ter dor.

Na casa que entregou o machucado, a turma da reportagem foi pra beira da cisterna tirar poeira da cara, enquanto Alice e o menino cego estavam cheios de afinidades pra trocar. Já nasci assim, disse ele enquanto queria saber detalhes da cidade dela, do mundo que vivia, das coisas que gostava e conhecia.

- E por que chamam você de Delegado? – Alice interrompeu
- Porque eu tomo conta de tudo. Não deixo nada de ruim acontecer. – E fazendo continência afirmou - Tou sempre alerta e quando a coisa é triste, faço assim – estalou os dedos – e some! - terminou largando a frase em um riso gostoso.
- E você não fica triste nunca, mágico Delegado?
- Só quando dizem coisas que eu não sou.
- E o que você não é?
E ele respondeu sério, como ser fosse a coisa mais comum do mundo: “Eu não sou cego. Eu enxergo diferente.”

A conversa estava solta, o pessoal já tinha entrado no carro e Alice deu tiau pro pequeno:

- Você gostou de mim? - ele sorriu ao perguntar
- Claro! Agora você é meu amigo
- E quem é você?
- Como assim, eu já te falei um monte de coisas a meu respeito. O que você quer saber mais?
- Quero ver você – disse esticando a mãozinha.

Alice se ajoelhou e colocou a mão dele no rosto dela. Os dedinhos do menino mapearam-lhe os cabelos, os olhos, a ponta do nariz, a boca. Depois com as duas mãos, torneou-lhe a face. Fez isto com a ponta dos dedos, contornando cada pedacinho do rosto dela, como se esculpisse a parte que tocava. Ela devolveu o gesto, só que, talvez pra ver igual ao menino, fechou os olhos. Daí foi que sentiu a alegria dele. E pode experimentar na singeleza deste toque, toda a beleza daquela criança, na vida tilintando, o mágico, que tira a dor, que some o triste. Ela estava diante de alguém que mesmo não tendo nada, era puro e feliz. E ainda que vivesse no mais obscuro isolamento, detinha poderes só pra ver. Chegou a sentir aquele silencio que eleva a alma da gente. E quando abriu os olhos, ele sorria.

- Você é mais bonita do que eu pensava – disse ele
- Acho que gripei – respondeu escondendo a emoção
- Por que você tem que ir embora, se eu gostei de você? E eu sei que você gostou de mim. Tou vendo no seu coração.

Alice beijou a palma da mãozinha do menino.
- Ah, Delegado, porque moro lá. Tudo meu está lá. E vou guardar você aqui, ta bom?
- Então me dá uma foto sua pra eu ti ver toda hora que sentir saudades?

A foto que deixou com o pequeno Delegado trazia estampada, ela e os filhos, que Alice explicou pra ele tim-tim por tim-tim, com todos os detalhes. Levou dele, a pureza dos que vêem com a alma, dos que ainda sonham e querem sentir quem é você. Na ponta dos dedos.

Em casa, depois de copilar a matéria do trabalho, foi rever os amigos. Dieguito39, Joice, Rosana, Sissym, Romorena, Lilika, Tulipadourada, Rebonelli, LuLei, Lua Nova, Vividiniz, Ebrael, Maria Souza, Rita Costa, Principell Encantado, Lison, Helena, Victor, Márcia Canedo, Joicinha, Luiza, o blog da comentarista, Denize, Leila,Lucas, Claudia, Tatiana, Lilian, Nakamura, Sidney, Marli, Amooorrrr... tanta gente, seres assim que a gente vê na ponta dos dedos e se apaixona. Pura e simplesmente.

João? Ah, ele se foi. Diferente do Delegado lá de Cabrobó, João que é do Rio de Janeiro, tem uma vida cheia de pedras e assaltantes; não vê as coisas na ponta dos dedos. Lá não existe isto. Tem de ficar alerta o tempo todo. É porque tem o medo no bolso. A vida faz isto com quem vive em muralhas de pedra e asfalto. Por isto, preferiu cortar, pela raiz, o que achou duvidoso e saiu, por ai, soltando tiros pela boca. Mas ela ainda pode vê-lo, uma última vez, dissolvendo-se no meio dos megas e bytes da net, no estalar dos dedos, naquela curva, bem na tecla “delete”. É um bom homem, pensou. Ainda será um grande menino!

15 comentários:

  1. Anônimo17:11

    Não sei nem ao menos o que comentar, como se de fato isso foi novidade, mas a maneira com que você escreve torna quem comenta uma 'anta molhada'.
    Adorei sua cronica, por mais triste que esteja. É sempre bom ter uma criança perto para nos puxar da tristeza que mostrar que o mundo não é tão ruim como parece!
    Parabens, você como sempre arraza, com Z, no que escreve!
    beijos
    byy

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  2. Olha, Valéria...

    Nem é pq vc nos menciona não q vou rasgar seda pra vc!! Precisa de um caminhão de seda!! Des de o começo, fiquei passado pelo pulso com que vc escreve.

    Tô pensando em escrever (prometi a mim q amanhã começo o roteiro) um livro, e é bem com esse teor, esse ritmo que quero escrever. Não sei se vc entende...nessa velocidade, nessa cadência...

    A sua história é tão veloz, impregnada de um dinamismo que nem vi o tempo passar. Aqueles mesmos dias da Alice foram rápidos demais...kkkk vou sentir saudades dela...

    AhhhhhhhhhhhValéria...edita meu nome...não tem M nele...é Ebrael!!

    Bjs Valéria!!

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  3. Anônimo18:31

    Saudações!
    Amiga
    Que Post Fantástico!
    Com sinceridade, fazia tempo que não leia uma Crônica desta magnitude... Minha querida amiga, quanta falta faz o” Delegado”, para todos nós!!!
    Sou muito agradecido pela lembrança... Uma das boas coisas que aconteceu aqui no diHITT, foi ter lhe conhecido.
    Parabéns pelo excelente Post!
    Abraços fraternos,
    LISON.

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  4. Acho que o segredo das relações humanas está mesmo nesse deixar-se acreditar pelas sensações extraídas da "ponta dos dedos".

    De certa forma, vejo na figura dessa bela estória (ficção) que no coração dessas pessoas que "enxergam diferente" precisa e está injetado pureza de pensamento e doação na troca de afetos.

    Muito lindo e obrigada por me citares, Valéria... és uma amiga que, com certeza, sei de sua pureza de alma através da ponta de meus dedos.

    beijos,

    Maria Souza - Porto Alegre - RS

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  5. Olá querida amiga,

    Seu texto é lindo!

    Emociona e encanta qualquer leitor.
    Essa mensagem é uma fonte da qual matamos nossa sede, da qual nutrimos nosso corpo e da qual enriquecemos nosso espírito.

    Parabéns!

    Fraterno e carinhoso abraço,
    Lilian

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  6. Oi Valéria, antes de em deitar precisava ler o seu post e adorei sabia.Não porque me citou nele, isso pra mim é motivo de orgulho,significa que me enxergou por trás da tela do computador e isso pra mim tem muito significado. Mas o mais importante é sua maneira de escrever, acho incrível isso, tenho ainda o sonho de escrever um livro, mais confesso um pouco de receio se teria esse ritmo de escrita que vejo em você. Parabéns por mais um belissímo post e obrigada pela indicação da notícia.
    Beijos no coração!

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  7. Amiga adorei sua crônica, e tenho e tenho de tirar o chapel para seus escritos, parabéns.
    Abraços forte

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  8. Existem coisas do cotidiano que podem ser mágicas... e existem pessoas que entram em nossas vidas pra fazerem existi tais momentos.Me referindo a você.
    E esses amigos que se refere no texto são minhas estrelinhas sorridentes. Deles tenho infindável admiração. Amo cada defeito e cada qualidade de cada um deles.
    E todas as coisas que já lemos e interagimos juntos... amo tanto que ate ja brincamos de estilingue e duelo né EBRAEL?ahahah
    E curto tantos outros por aqui também, muito mesmo a ponto de sair do meu conforto e entrar em qualquer viagem que eles me propusessem através da leitura. Na verdade eles tornaram meu tédio em notícias em ums espetacular chuva de estrelas cadentes, acabou o tédio.
    Com eles qualquer banho de chuva de estrelas são momentos bacanas.
    E espero que eles continuem trazendo cor a minha telinha, que pintam e bordam com categoria. Fazem de nossas vidas eventos deliciosos, tornando-se amigos que valem sempre muito a pena. Eles são muito mais do que amigos trocando notícias. Eles são pedacinhos de mim que estavam espalhados pelo mundo e que o destino tratou de me trazer de volta. E que não vou esquecer.
    AMEI o texto.

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  9. Anônimo09:21

    Ai Valéria! O que é a vida... Estava triste hoje (tenho cá os meus motivos), o que não é comum, achei até que não ia entrar na internet.

    Então vejo o teu recadinho, e me deparo com esta maravilha de postagem. E aqui estou eu tentando fazer um comentário que faça sentido.

    Li o texto quase sem enxergar direito, olhos marejados, encantada com um lindo menino cego e com uma escritora de uma sensibilidade incrível.

    Sabe aqueles dias em que você acorda se questionando?

    Vale a pena?

    Faz sentido continuar?

    Meu coração está aqui?

    E encontro teu post.

    Vejo a lista dos nossos amigos queridos, me vejo incluída nela, a emoção toma conta, já vieram me perguntar se estou passando bem.

    Penso nos amigos que não consigo dar a atenção que merecem, alguns com quem ainda não consegui estreitar os laços de amizade, embora já goste e admire, você um deles... Lindos textos que não consegui ler e prestigiar...

    Neste momento, estou com o coração na ponta dos dedos, tentando expressar o que estou sentindo. Mas ainda não tenho a maestria do menino cego, que sabe enxergar o que realmente importa.

    Demorei, mas reencontrei outra amiga aqui hoje, que reconheço tranquilamente.

    Desculpe meu jeito sempre exagerado. E perdoe também se não consegui fazer sentido.

    Bjs no coração Denize

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  10. oi
    amiga
    adorei
    a historia
    alegre
    comovente,
    e teu blog linderesimooo
    bjus
    edilene

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  11. Amiga, seu conto é muito envolvente e eu me senti tomada pelo sentimento. As relações são meio complicadas. Podemos ter tudo na ponta dos dedos, dos lápis, ou guardada a sete chaves.

    Agradeço por ter me citado tambem, eu adorei vc desde o primeiro encontro no dihitt!

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  12. Hoje é sexta, então sorria!!
    E tenha um fds abençoado
    bjsss

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  13. Puxa!!!!
    Que bela crônica Valéria!
    Gostaria de ter estado na lista dos amigos que Alice foi rever (rs).
    Quem sabe um dia?!?!

    Forte abraço!

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  14. Leôncio Rubens Macedo13:50

    Desculpa a demora... Estava até ansioso pra ler a continuação, mas a vida, as tarefas...

    Mais uma vez vc conseguiu puxar um "gancho" pra dar seguimento à história. E o faz de maneira surpreendente. Alice consegue ver o João de uma maneira que eu não tinha pensado. O Delegado... um mimo pra nossas vidas. É mesmo, minha querida, não é bom julgar as pessoas. Sabe-se lá o que vive um homem nos dias globais?

    Mas Alice não pode "sumir". Continue a história e junte este dois; Joao e Alice. Você saberá dar um desfecho menos triste que o abandono da tecla "Delete".


    Bjs minha escritora favorita!

    Leôncio Rubens Macedo

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  15. Tamara e Telles Kroowsly Diniz06:56

    Eu quero muito a continuação!!

    Tamara e Telles

    Val, fiquei te conhecendo semana passada no restaurante do Chico. Espero que se lembre de mim. Meu irmão virou seu fã. Em todos os sentidos. Nós dois estamos lendo aqui.
    Bjks

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