Lembranças, açucar e pimenta






Para fazer vidro de pimenta, é preciso selecionar as mais maduras e, sem os talos, coloca-las em vidros limpos, imersos numa boa aguardente. Se quiser que arda mais, é bom acrescentar azeite. Óleo de pequi da um toque diferenciado. Acrescenta uma pitadinha de sal e pronto. Tampa o vidro e o deixa esquecido um tempo. Dependendo da pimenta que escolheu, poderá arder muito ou pouco.

Ontem, fiz dois vidros. Um de arder de verdade com a pimenta picada na faca, e outro, mais ameno, para as visitas, com as vermelhinhas inteiras. Só não sabia que as minhas mãos iriam ficar pegando fogo, logo após o processo. Com a cidade sem luz, passei horas com as mãos imersas em água com açúcar. Olhando pro nada, lembrei-me de Chiquinho.

Um poodle que dei de presente para minha filha que queria um Vídeo Game de quase 2 mil reais. Ora esta, pensei diante do preço, pra que uma moça, quase Polícia Federal, graduada e de faixa escura do Jiu-Jisu e Muay Thai e com uma agenda lotada, age assim? Dai, em uma destas andanças pelo rio São Francisco, eu vi um rapaz vendendo um cachorrinho caramelo: era o bebê Chiquinho.

Coloquei o bichinho nos braços dela, em meio à festa. “Presente é pra quem ta sem assunto”, disse-lhe diante do seu olhar maravilhado. E ele, ao lado dela, virou mais um morador de apartamento.

Arrojado, petulante e metido, Chiquinho tornou-se membro da família. A gente só não entende o que ele fala, porque não aprendemos “au-au”. Mesmo assim, nos comunicamos bem. E o peludo não se faz de rogado:  arrasta a sua coberta, na hora de dormir. Carrega a vasilha na boca, pra mostrar que a água acabou. Mas é só um cachorrinho. Mesmo que, às vezes, eu ache que ele não entenda bem isto.



Depois de passar uns 15 dias na minha casa, que tem cara e jeito de fazenda, ele e minha filha foram embora. Ficaram as fotos e as lembranças. A cara de Chiquinho diante do verde. O silêncio estupefato diante dos micos no telhado da cozinha. A primeira vez ele que viu uma galinha! A alegria por poder brincar com outros cachorros e correr livremente pelo quintal. O churrasco de carrapato ao qual foi vítimado! (Nossa, aquilo deu um trabalhão pra resolver). E o mais inesquecível de todos: seu olhar diante do verde.




Pois é, eles voltaram pra cidade "grande" e hoje recebi a notícia que Chiquinho anda deprimido. Diz que vai da euforia, a tristeza. Isto porque passa horas olhando para o nada, suspirando. Depois fica barulhento. Mostra a porta, entrega a guia. Quer sair. Mas, na rua, fica mais agitado ainda, talvez procurando o que não existe na cidade de pedra. Nem os passarinhos que ele adorava ver pela janela. Muito menos os bois. Ontem, minha filha me contou que Chiquinho estava de barriguinha pra cima, e de vez em quando, só de vez em quando, olhava para o  lado querendo confirmar a presença da sua fiel companheira. Depois, entre um suspiro e outro, entregava sabe-se lá, as lembranças do dia que alçou voos pelo verde."Chiquinho esta na fossa", disse-me ao telefone.

Agora você deve estar se perguntando, “o que tem haver a pimenta, mãos submersas em água e açúcar e, Chiquinho?” 

Aparentemente, nada. Mas se olhar bem, com olhos da alma, verá que é como estar diante de um fato que não pode mudar. As mãos ardem, mas a doçura  com que a gente imerge nas deliciosas lembranças, faz diferença. Faz valer a pena. Mesmo que arda.

Chiquinho vai sarar. A fossa passará. São as pimentas da vida, na vida de todos nós.

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