A Carta
No chamado de cada um, Alice e Santiago seguiram por outros caminhos. Cada qual tem seu chamado! Ele quer se fazer doutor e ela tem pressa em viver. Um tem que percorrer o caminho, o outro precisa parar para faze-lo. Então, relembrando lá, o princípio desta história, nesta carta, ela se despediu:
“Meu bem,
O rio que nasce lá em cima desce todo animado, é pequeno, só tem um filetezinho. E, pelo caminho, recebe pequenos rios e córregos que injetam bem na sua veia, mais vida, mais água e ele, junto e misturado, vai assim, tomando volume e se formando mais rio!
E o rio que é rio, que é gente feito a gente, cresce, passa por muitos lugares, diferentes essências e jeitos. Vive de tudo; ora com os peixes que vêm nadar pra fazer festa e procriar, ora com os pesqueiros que abastecem a família e o bolso. Jovem, astuto, arrogante, bate suas águas nas pedras pra fazer barulho nas corredeiras só pra mostrar virilidade. É resoluto, brilhante, inteiro, vistoso! E vai seguindo, seguindo, ora em linha reta, ora pelas curvas do caminho. Vai que vai, apaixonado!
Mas com o tempo, ele se torna mais brando. Começa levar aquele jeitão manso, talvez refletido pelos enigmas nas histórias que colecionou desde lá de cima. Feito gente crescida derrama lágrimas de amor e de dor, como as mães que festejam a alegria dos que acabaram de chegar e que choram pela saudade dos filhos que partiram. É nobre como o homem que se debruça na varanda do tempo pra contemplar e desaguar as pequenas grandes facetas da sua história, aquelas coisas que não se explicam, mas acontecem. Quando entorpecido de paixão, clama pelo amor que se foi... O rio é gente, gente como a gente. Encruados nas suas águas, tá cheio de histórias. São vidas. Muitas vidas!
Daí vai descendo, mais pra lá, e ainda brinca no sacolejo, às vezes até faz onda, mas descobre que já é tão grande, tão pesado e que não precisa e nem consegue mostrar tanta força. Nesta hora, alguém lhe conta que em breve vai virar mar.
E ele se pergunta: mas... mar; o que é o mar? Uma imensidão esverdeada e brilhante que vai dar nos quatros cantos do mundo? Como é ser imenso? Não fazer parte de nada e ser tudo? Então tem medo. Abre os braços, na tentativa desesperada de se segurar pelas beiradas, de se ater ao tempo, de voltar às corredeiras, de abraçar a lua e sugar o sol. Quer parar. Contudo, suas águas desfilam para o infinito. Matas ciliares já não existem mais. No fundo, se sente enfeiado dos lixos que recebeu. É na tentativa de se agarrar, inunda cidades, vales, vilas, lugarejos. Mas, pra onde correr? É inútil. Não tem como parar a coredeira. Não tem como freiar a vida e parar o tempo. Não tem como ficar rio.
Nesta hora, resignado, vai complacente. Fez o que fez, leva a vida que levou, carrega o que amou. Por isto, ao final, manso e silencioso, se entrega ao mar. Daí que, o que era pra acabar e se perder, se modifica: o Rio vira Mar.
O mar, meu bem, coleciona histórias e as guarda para si. Mas o rio fala, porque não quer passar em branco entre o céu e a terra. Então, neste fluxo, faço-me olhos do mundo nas histórias que impregnam o rio. Não pra obter respostas acerca dos mistérios, mas para viver rio e não trair a vida, pois se me nego, abandono os talentos que Deus entregou a mim e em mim, espera. E só assim não serei vencida."
Depois assinou, pura e simplesmente,
"Alice.”
E saiu.
Foi assim, desse jeitinho assim, que se separaram.
De longe, bem de longe, os olhos brilham e se despedem. Os cílios que um dia brincaram um com o outro, mudam de direção e seguram o que aperta a garganta. Outros rios virão, aqui ou noutra curva em que se fizer caminho até o fim da jornada. E este continua sendo o segredo só do mar.