Nos braços de Santiago




Quando Santiago deixou Alice em casa, o sol já espalhava claridade na terra. Tinham passado toda noite no alto de uma pedra, bem em frente ao rio. Isto depois de um terere danado, por causa de uma briga feia que acontecera na rua de baixo. Uma discussão que acabou em murros. Daí, que quando chegou na casa dela, bem de tardezinha, foi logo dizendo que andava cansado, exausto da vida, inundado pelo trabalho chato e pedante e, ainda por cima, arrasado por ter cedido aos impropérios de um bêbado e ignorante chamado Tonhão Cru. Alice tinha os olhos redondos de chorar, não tanto pelos sopapos trocados nas palavras mal ditas entre os então inimigos, mas pelo medo de pensar que seu amigo estivesse mortalmente ferido. E ao vê-lo ali, são e inteiro, colocou a mão no peito, como se quisesse segurar o coração que vivia doido pra descer do mundo.
Santiago tocou na ferida:
- Como foi o resultado do médico? O que ele disse desta vez?
- O mesmo. Meu organismo não reage – e querendo atestar pelos braços- olha só, nem tem mais a onde furar. Agora é esperar e contar com tempo.
- Deus é o tempo, minha querida, o grande Papai do Céu quer ajudar você. Por que não se entrega a Ele? - respondeu ao ver as manchas roxas espalhadas pelos braços e pés da amiga. E, impetuoso do jeito que é, foi logo jogando o chinelinho na sala: “calça ai e me dá sua mão, vamos sair. Ninguém espera por uma coisa destas, sentada.
Alice e Santiago são amigos e conhecem muita gente. Das esquinas de cada espetáculo humano aos becos de cada um. Mas nada disto importa. Ali, um precisa do outro. E por isto foram se sentar na mais alta pedra, cara a cara com imensidão de uma nuvem fofa, que mais parece uma banheira cheia de espuma.
É o canto de Santiago. O lugar onde se deixa quando está perdido. Agora, trazia Alice pra falar dos mistérios. E quando a grande nuvem se dissipou, ela disse:
Santiago, você já observou o Rio? Lá em cima, na nascente, ele vai descendo todo animado, é pequeno, só tem um filetezinho. No meio do caminho outros pequenos rios e córregos vão injetando mais água nele e assim, vai tomando volume e se formando. Crescendo, passa por muitos lugares, com diferentes vidas e jeitos. E ele vive de tudo; peixes que vêm nadar pra fazer festa e procriar, pesqueiros que abastecem a família e o bolso. Suas águas batem nas pedras, fazendo tanto barulho nas corredeiras, só pra mostrar virilidade. Está resoluto, brilhante e feliz. Então vai seguindo, agora mais brando. Começa levar aquele jeitão manso, talvez refletido sob os enigmas que colecionou desde lá de cima. E, descendo pra lá, ainda tenta se sacolejar mais, fazendo até onda, mas descobre que é tão grande, tão pesado e que já não tem tanta força, quando alguém lhe conta que em breve vai virar mar.
E ele se pergunta: mas o mar; o que é o mar? Uma imensidão esverdeada e brilhante que vai dar nos quatros cantos do mundo? Como é ser imenso? Não fazer parte de nada e ser tudo? Ele então tem medo. Nesta hora, abre os braços, na tentativa desesperada pra se segurar nas beiradas. E mesmo não querendo, corre desembestado, porque as matas ciliares não existem mais. No fundo, tá enfeiado dos lixos que jogaram nele. É inútil e não tem como parar.
Nesta hora, arrebatado, se deixa levar, está complacente. Manso e silencioso, se entrega ao mar. Daí que, o que era pra acabar e se perder, se modifica. O Rio agora é mar também. O mar tem sua beleza e seus mistérios. Mas, o maior deles é ser feito de muitos Rios e ainda assim se manter salgado.
- Todos nós somos um Rio, minha querida, e o que é o sal, senão tempero da vida? As quedas estão ai, não tem receita pra mudar isto, mas você não pode deixar que elas sejam pra sempre – disse ao colocar o rosto dela no peito e enlaça-la.
Mas não pense que exista silencio naquele abraço. O silêncio tem voz, a gente tem que saber ouvi-lo. E nela, Santiago foi a maior voz que calou no coração de Alice. Não para falácias de auto-ajuda, mas para lhe entregar no mágico amplexo, a energia para que se refizesse. Ali, provavelmente, o Rio que se impregnou da amizade de um homem e de uma mulher, até aceitou sua condição de ir morrer no mar. Isto, porque sabe que amigos têm o dom de curar, não as feridas - estas são para médicos e remédios - mas o que as ocasionou.
Ele sumiu na rua. Alice abre a janela e o céu se enche de luz. Nasce, esplêndido, um novo dia. Agora, é hora de recomeçar, porque o tempo urge e o mar é bem ali na esquina.

Esta crônica foi escrita para todos os amigos, reais e virtuais, que se dedicaram em coração à Alice. Em especial ao meu amigo nada virtual, aqui representado pelo nome de Santiago.

Leia mais