A Força do Vento
Esta é a continuação de "Chove no tapete verde do meu quintal..."
Foi no beijo, recheado de veneno, que a
mulher nada virtual, o abateu de vez. Dias antes, tinha lhe jurado que o
tratamento era besteira, que ele já estava bom para lhe passar os mundos e
fundos a que se propôs desde o início. Depois, quando não conseguiu mais
dinheiro, arrancou seu coração ao dizer-lhe que queria ser indenizada pelos “serviços
prestados à sua velhice e doença". E, se ele voltou para casa com um
restinho de vida, deve-se a anônimos que o socorreram, àquele momento de
horror.
Fui ficar com ele no hospital.
Estava magro e abatido e suas mãos
tremiam mais do que de costume. Não perdera o jeito de juntar todos os dedos
pra tentar explicar seu ponto de vista. Mas, suas palavras, misturadas com
tantas lembranças, não o deixavam que fosse completamente entendido. Suas
palavras, frases.. eu não entendia! Seu peito abatido estava ferido
de todas as formas. Sim, a linda história virtual rasgara suas cortinas e
aquele homem enorme, lindo, tinha nos braços, pernas, mãos e pescoço tubos,
agulhas e fios. E usava fraldas. Sim, meu pai agora era o meu bebezão.
Nos dias em que lá fiquei, assisti aos
delírios de cada pedacinho da sua história, numa volta ensandecida ao passado
de frases emboladas e repetidas. Tentei participar, me fazendo passar por
caroneira, quando, como motorista de caminhão, ele começou a vida: “aperta
o pé, meu bem, que eu daqui me seguro!” E puxava assunto na “boleia” : “Viu
pai, o senhor venceu, construiu um tanto de coisas!” e ele sorria, fazendo
que sim, com a cabeça. E dirigia.... Eu, mesmo que chorasse em todos esses
momentos, ora brincando, ora elogiando seus feitos, ainda acreditava, sim
eu acreditei, que ele ia sair daquela.
Numa tarde, ele disse que queria se assentar.
“Xentá” foi o som que soltou. Chamei minha filha e cruzamos nossos braços
nas costas dele. “No três, pai”, e vrupt. Meu bebezão enorme, diante do
desejo realizado, olhou pra mim, pra minha filha e arregalando os olhos num
grande sorriso comemorou: “eu xenteeei...”. Sua vitória, nossa última
gargalhada... Mas eu ainda não acreditava. Porque ele era resoluto. Não,
nunca aceitou sua condição. Arrancava os tubos e fios, toda hora queria se
levantar: “Vão bora”, mas não aquentava e ficava prostrado com metade do
corpo dependurado na cama. Um absurdo de sofrimento!
“Fala devagar pai, estou aqui” gemia meu
coração, quando ele, agarrado às minhas mãos, formulava frases indecifráveis na
ânsia de se fazer entendido. Daí foi que eu, miúda e pequena, entregue a
dor maior, dei pra pedir o fim daquilo e, no silêncio indecifrável daquele
açoite estampei, enfim, o meu desespero: Deus acaba com isto!
Ela entrou no quarto e ajoelhou-se diante
dele. Alisando-lhe os cabelos brancos, mansamente, agradeceu pelos filhos que
conceberam e acrescentou que não havia restado mágoa e que a perdoasse também.
Frisou pra ele, que a vida é passageira. “Tá tudo bem, fique bem, tá tudo
bem”. Assim, escutando minha mãe, ele se calou e se deixou levar.
No entanto, nem o tempo tinha selado estas
dores, quando a agonia deu as caras e, de novo, levou minha mãe, poucos meses
depois, doída pela saudade. Como um passarinho, de tão pequeninha que estava,
rumou noutra estrada.
“Pra onde a senhora foi, mãe?”
Lúcida, fez o sinal da cruz na testa de todos
nós que ficamos. Bem lá, bem ao meu lado, simplesmente fez assim: o sinal da
cruz em um por um dos oito, daí os olhos se fecharam e a maquininha rabiscou a
linha reta, com aquele som horrível apitando o infinito... acabou.
Acabou. Acabou. Acabou...
Já, na casa que
era deles, dentro e remexendo no guarda-roupa da minha mãe, encontrei
dependuradas, ainda, as roupas do meu pai. O amor dela! Ali,
delicadamente escondidas, preservadas, todas limpas e passadas. E ao
retirá-las, todas pra doação, abraçada a tantas peças com o cheiro deles,
milhões de lembranças com o jeito deles, me deixei sucumbir, tombada diante da
imbecil realidade a qual eu nada podia mudar.
Daí, eu caí.
Geral. Corpo inteiro, alma inteira, desabei. Estava prostrada, enfim,
derrotada.
Da moça nada virtual só soube que tinha feito
a vida. Já tinha carro, loja bem montada no centro da grande capital do Paraná,
com direito a cartões e festas. Da corja que ela um dia disse se chamar família,
todos se sentiram lucrados, avó, irmão e os tais baibes.
A realidade diz que são bandidos e nossa
família foi sorteada pra ser sugada por eles. E pra preservar o que restou de
nós, decidimos que quadrilha a gente esquece. Devíamos ter dado o grito antes,
agora era renegar, encolher e se afastar. Acabou!
Por um tempo, perdi meu caminho. Mas a vida
continua e lá fora dá o grito, cutuca, chama e implora. Tenho que retornar nos
meus filhos que crescem e mesmo longe de mim, fazem tudo ir em frente.
A morte inexorável um dia irá abraçar-me,
levando-me ao encontro daqueles que tanto amei. É nisto que meu conforto. Ou
será uma ilusão para manter-me edificada? Não sei.
Hoje, fico horas olhando para o meu
quintal pintado de verde, sem pensar nada. Concluir o que? Estes dias
choveu e brotaram verdes pra todo lado. Tem dia que as árvores choram. Tem dias
que não. Diante da força da ventania, elas se curvam. Redimem-se da sua
prepotente arrogância em querer roubar o sol só pra si. Na calmaria se
espreguiçam...
Lindas bailarinas coreografadas pelo vento.
Deve ser para cingir a imensidão do céu de esperança. É, deve ser mesmo.