O Bem do Bem









Levantou, sozinha, olhou para o espelho. Tô bem melhor, pensou. Tomou banho, sentou-se à mesa, provou o café, olhou pro céu, depois pra fora e viu o quintal "será que vai chover? Vai nada, o sol tá muito quente, aquela nuvem escura vai sair dali."

Saiu.

Saiu pra resolver o básico, normal de toda semana: compras de supermercado, pagar contas no caixa eletrônico, trocar óleo do carro, calibrar pneus. Fez tudo automaticamente. Já estava no caminho de volta pra casa quando o pensamento puxou: 


Casa? Pra quê casa? Hoje é sábado! 

Meio do caminho, relógio marca meio dia e meio,  barzinho à esquerda, tá cheio, olho encompridado lá pra dentro. A visão foca: tem gente da família aqui! 

Estacionou e desceu. 

E o jogo foi rápido. Porque nem a tampinha da segunda cerveja aberta tinha quicado no chão quando o caso foi despejado.


Ele quer indenização?, interpelou, engasgou. 

Sim, ele era amigão, ajudou um tantão, quer receber os ouros deixados pela morte da irmã, da mãe dela, aquela, a preferida dele, que pagou as contas dele, inúmeras, de água, luz, telefone, carro, barco e feira.  Ta tudo configurado!

Daí, vem outra cerveja. 

Abre não! 

Mas abriram. 

Agora bebe, seu copo tá cheio. Mas e ai? 

A história continua. Ela não concorda. Mesmo assim, quer ouvir. 

E daí?

Pagar por que foram amigos? 

É sim, coitado. Depois que ela morreu, ele ficou na miséria, nem comida tem mais lá. 

Coça a cabeça, não entende. Até lembra. Ele chorou na despedida. 

Era mentira! 

Ele se despedia dela ou do que ela representava financeiramente pra ele? quis saber. 

Claro que era dela! explicaram, você não entende, nunca passou necessidade na vida! 

A cerveja tá quente, a mente ferve. Não quer mais saber daquilo, nem de estar ali. Levou paulada na moleira, tá zonza. 

Bebe ai! alguém ditou. 

De novo? 

Ela não quer: Não, tá quente!! 

Depois, ah, tinha mais, alguém assumiu o comando de tudo, você nem tem que se preocupar. Mandou dizer que não te faltará nada. Como assim? Não tem assim. Acabou. Acabou? O que acabou? Mais cerveja, de novo, aberta. Quero mais não, tira o copo. Num que o  quê? Você sempre gostou! A voz continua; preocupa não, ele vai cuidar de você. Ele quem? Quem falou que eu quero que ele me cuide, assim? Esurdeceu. Agora só escuta o assombro dentro de si. Ele urra. De fora é resto, é boca que abre, boca que fecha, boca que mastiga carne e baba gordura. Estão gargalhando, tem dente cariado. Tudo é dinheiro. Tudo fachada. O bem de cada um sumiu. O brio da cara, da vergonha, da honradez? Sumiu ou nunca tiveram e eu nunca vi! Vida banalizada, perda do maior valor, tou com enjoo, almas vendidas, vergonha é piada. O da frente se isenta: não me meto nessas coisas, problemas seus ai...

Agora tá zonza,  se levanta da mesa. Falta de ar foi só o começo no disparar do coração. Pra que ficar mais ali? Cadê meu ar? Despediu de jeito cordial, parecia bêbada. Vai pra onde? pergunta o da frente, fica aqui, você não dá valor a família? De raiva, fez que riu. Mostra os dentes. Saiu.


Foi fazer via sacra: bar de Toninho, de Babau e de Silvano. Nenhum serviu, nenhum coube, nem ela e nem as informações entaladas na goela. Nem  bebida mais forte desceu. Melhor parar debaixo do pé de manga, mais perto de casa. Estática, abobada, corpo apanhado, parou. Quer ar. Fica calma, respira fundo. Puxa o ar e solta. Jeito de fortalecer o coração.

Que bicho é aquele? De novo, o Mico. 

Tinha birra dos micos, mas era ele que estava lá na hora que música tocou, por que não vai pra casa? pensou, sai daqui!, gritou. 

Mas a casa não cabe. Melhor ficar ali. Se acomoda. Do rádio sai a voz que canta; é dele seus pensamentos agora. Suga o cheiro das lembranças. Tem que ter um restinho da poesia dele, é ele, ali, no cheiro da saudade, no apoio, nas palmas das mãos. 

Suga, respira e aspira. É alento. Não esta sozinha, tem sonhos, quase chora, pára, controla, pede e repete; é a alma quem diz. A música no rádio, nossa música! Agora sorri.


O grito que é surdo, engole, quer silêncio. Tá sozinha, não precisa parecer forte, por isso chora de verdade, de boca aberta e mão no rosto. Deixou a mulher pra lá. Agora é menina assustada. Abocanhada. E o celular que não pára chama seguidamente, tem gente querendo saber disto e daquilo, tem acidente na estrada, gente que foi presa, por que você não veio cobrir? Mas a jornalista não liga e desliga, tem que pensar, tem que se acalmar, é raciocínio que se perde. É menina despida.

Mas continua aquela insistência no telefone que toca um, dois, depois outro chamado, e assim vai e ela atende uma por uma, entre um engasgo e outro, não posso, não vou, tou longe, até que, quem é você? rosna com a boca no telefone. “Sou eu, meu bem, seu bem! Estou sentindo daqui, o que tá acontecendo?”.

Estofado do carro fica macio, corpo amolece. E com sotaque batido a voz amassa: vai pra casa! É ordem vestida de pedido. Então, se acomoda. O abraço vem. O beijo sussurrado colhe. A voz orquestra ordem na dor. Respira e aspira. Um milhão e seiscentos e oitenta e seis mil passadas daqui lá. Só isso? Dá mais!! Aceita e ressente. Tá longe mesmo. No curto silencio só falou: é você, meu bem? Enquanto escutava ficou leve e até deu ei pro infeliz do Mico. Até que ligação cortou. Caiu. Oh dó, acabou...

Olha em volta. O momento exato, o segundo que retoma o ar, no mundo que é grande, no céu que é azul e escuro, onde a lua que é cheia e graúda, o corpo, ahhh, suspira, o corpo que torce e contorce, que ainda dói na garganta abafada, afrouxa e até se refaz ali mesmo, por que não tá sozinha não. Ah, não tou mesmo não, viu? 

E isto é um ponto pra seguir. Ajeita os olhos, já dá pra sair do carro, levanta a cabeça, espana a saia e vai. 

Ta fazendo o que ai? Paixão, não, mas eh saudade, hem?, zomba o que via tudo do murinho. 

É saudade sim, muita saudade do meu bem.

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