Morte Encomendada





O negócio era matar o sujeito. E Nildo queria tudo enterrado e sacramentado na esperança de ter de volta sua vida pacata.


Vivia encafuado com a  possibilidade de  protagonizar o fim daquele moleque desde a hora em que viu o merda lambuzar, de mão cheia, a bunda de Tereza. Ah, aquilo mudou sua vida! Tudo bem, o fato era passado de dias, já devia até ter esquecido,  mas ele não tinha engolido a afronta. Era o sapo grande demais grudado na goela a lhe amargar a boca, revivendo em cada segundo a hora mastigada. Maldito canalha que lhe deixara as vísceras reviradas! Agora vivia o ódio retido. Por isto, só por isso, vinha enchendo a cara da Cachaça do Brejo na esperança, não de cura ou descarrego, mas de amaciar a aversão que sentia por si mesmo, por se ver covarde,  inerte, abobado em seu brio ferido. Pensa cabeça, pensa, ruminava entre uma tragada e outra. Mas os sorvos da cachaça só lhe  incitavam as lembranças, apunhalando, feito  fogo, o desgosto cravado no peito.




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Nesta parte da lembrança, 
até prende a respiração.


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De tudo sentia nojo. Da voz escachada no ouvido da nega gostosa, do som do tapa, da mão girando, depois, de baixo pra cima, "tchaa", assim, seco e direto, chicoteando o traseiro da mulher. Depois, o  grito que ela deu, a risada que o homem soltou, o mugido seguro entre as mãos na ignomínia do riso. Nesta parte da lembrança, ele até perde a respiração. Acende o cigarro e mergulha no sangue fervendo das veias. As imagens continuam se formando. 


Agora vê a si próprio, a girar o rosto esbugalhando os olhos, a boca despencar, talvez até a tenha mantido aberta por m uito tempo! Ah, corpo sem ação, sem reação,  morto! Nada fez! guardou a cara do maldito!


A cachaça lhe apresentava apaziguamentos. Não que sentisse paz. Apenas porque lhe trazia a mente as mais variadas formas de se vingar. Um tiro, uma facada, talvez o machado fosse o mais certo, mas não antes de lhe cortar as mãos. Depois, vencido, se lambuzaria do sangue do execrado.

- Iria preso, mas o que importava isto? Tereza até podia chorar, mas amargaria o dia em que, balançando o corpo no vestido colorido deu brechas pra´quele sujeito. Se ele ficasse na cadeia, talvez ela vestisse preto, talvez enlutasse a alma até o fim dos seus dias. Não, não faria isto! Do jeito que tem se comportado, iria era tripudiar da sua dor, lembrá-lo de sua covardia, do seu desleixo, e no instante seguinte, se arranjaria nos braços de um outro qualquer. Pensa, cabeça, pensa!- ruminava Nildo, na volta cambaleante pra casa.


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 Sonho ou realidade?
Nildo encontra a solução!
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- Anda bebendo demais,- interrompe o vizinho ao vê-lo tentar acertar a chave na fechadura de casa -  o que tá acontecendo, filho de Deus?


Talvez, porque o homem tenha lhe chamado de filho de Deus ou porque já não aquentava mais, de certo foi que Nildo se abriu com o preocupado vizinho. Contou sua amargura, das suas dores, em todas as cores, falou  até das sentimentos mais íntimos, até no desprazer de tocar no corpo da mulher.


Agora não é dia nem hora pra resolver isto - respondeu o vizinho informado - mas amanhã, quando ocê tiver sarado desta carraspana, vem na minha casa, que lhe ajudo na questão.

A esperança fez Nildo dormir. Noite inteira, um sono só, sem resmungos nem pesadelos. O dia amanheceu rápido, cheio de energia, vestido de banho morno, barba e café. E foi caminhando pelo quintal que a solução foi colocada nas suas mãos: 


- A gente chama ele de Benfeitor Ubirajara - cochichou - acho que nem desse mundo ele é ! 


E lhe entregando um envelope fechado completou:


- Aqui tem sua apresentação e minhas recomendações. Ele não gosta muito de falação. Leva junto a foto do sujeito ouve tudo com muita atenção.  O homem é seco que nem couro esticado, ta acostumado com estas coisas. Vai te encontrar na rua de baixo.


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Cara a cara com o matador
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O homem era magro.  Até demais. Sentado sobre os calcanhares trazia no pescoço mais colares do que a própria Tereza que, vaidosa por si só, nem poderia imaginar ter. Fumava um palha, cuspia o tempo todo olhando ora pelos lados, ora de baixo pra cima, tudo no canto do olho. Lê as recomendações, chupa o dente, ejeta catarro no chão e cobre a gosma com o dedão do pé rachado.

- Fala o nome do morto - manda
- Teotônio Macedo da Cruz.
- Aponta a direção de onde ele esta -mandou de novo.


E Nildo, tremendo de medo e exaltação, apontou para o norte. O Benfeitor, ainda abaixado, estica as mãos e  dedilha os dedos compridos no ar, pedindo a fotografia.


- Vai pra casa -  disse após de mirar  a foto longamente - a morte já tá encomendada. De hoje, a um mês, ele tá morto. Mas vou dar dois tiros. Só dois. Se não matar, é porque não tem jeito.


A fala rasgada do Benfeitor ainda zunia no ouvido de Nildo, quando completou: 


- A paga. Você tem que fazer meu pagamento. Mas não quero dinheiro não, ouviu? Ocê vai ter que ir a igreja 30 dias, mandar fazer 30 missas, rezar pra mim em segredo 30 dias e no dia da morte do caboclo, ocê tem que tá no enterro e ajudar a carregar  o caixão! 


O olhar do Benfeitor Ubirajara, agora pregado no dele, não deixou dúvida, nem mais conversa: o assunto estava encerrado.Deu de costas e saiu, sem nem olhar para traz.



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Trinta dias cumprindo o pagamento! 
Se fazendo de fervoroso e rezando 
até para parente de quinto grau
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O tempo seguiu seu caminho de fazer rodar o relógio em abrir o dia e fechar a noite. Nildo, com a desculpa de querer paz pra toda família, mandou celebrar missa todos os dias do mês. Fez questão de espalhar a notícia,  se fazendo passar por  fervoroso e praticante, rezando  até parente do quinto grau.  E quando já duvidava da promessa do Benfeitor, a notícia veio lhe bater à porta: Teotônio morreu!


Foi de chapéu preto e cabeça baixa. Alcançou a alça do caixão, primeiro de todos e quase chorou, quando viu a cara do finado.  O homem estava esturricado! 


O povo comentava, assustado, a sina do coitado. Nasceu retardado, cresceu sem deixar de ser criança e o raio que o matou, veio duas vezes do chão. Um bateu do lado esquerdo, ele até pulou, mas a outra, a certeira, subiu, rodou e foi parar bem no meio do topo da cabeça, fazendo encher de brasa, em um só instante, o menino gigante.



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Foi sonho ou aberração?_________________________________________



Quem me contou esta história foi o Nildo. O pobre nem bebe mais. Anda atrás do tal do Benfeitor Ubirajara que ninguém conhece, nem nunca ouviu falar. Deve ser por isto que vive numa rezação sem descanso. Tereza diz que virar doido é coisa de família. Ela cuida dele, mas de medo, botou o marido pra dormir no barracão. Outro dia andou esfregando aquele traseiro enorme no vizinho. Deu um bate-boca danado. Mas isto... ah, isto é outra história!




VéiChico



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