O gosto do que se gosta

Respondendo ao convite de Mary MirandaTônia, e Laudelino eis aqui, o MEME com as 10 coisas que mais gosto. E para falar destas coisas, antecipadamente, quero que saibam: acredito que tudo o que tenho, me foi emprestado. Então, eu gosto da liberdade de não ter pesos nas costas. Eu só carrego a mim mesma  e vivo as sensações que "coisas" produzem. Portanto, das coisas que convivo na  vida,  minha casa guarda a maior parte de tudo o que mais gosto! E eis-me aqui no meu primeiro dia de folga,  para falar dos  sentimentos e pessoas que me provocam o prazer de ser e estar.


E o dia começa com uma boa notícia. Achei minha carteira! E esta é uma sensação muito boa. Todos os documentos, as fotos da família, o trocado pra passar o fim de semana, tudo certinho! É bom demais, viu? Ela estava dentro do meu carro. Eu gosto muito do meu carro: o Jerimum! (apelido que dei a ele por   ser minha carruagem cor de  abóbora)



Então, é hora de comemorar. Ou melhor, relaxar do estresse que passei. Que tal uma super, mega, hiper-gelada? No som, música de Michael Bublé, Mariza, Emerson Nogueira, Norah Jones, umas pitadas de Zizzi Possi, Ana Carolina e a coisa vai esquentando... Zeca Pagodinho e outros. Gosto de dançar! O som daqui é muito bom! Então, que tal escancarar as janelas? Gente, eu tenho um quintal lindo. Olha só na foto:




E por estas janelas, nesta paisagem que mais parece uma pintura, passam Araras, Tucanos, Pica pau, Beija flor, Bem-te-vi, João de Barro (além de besouros, sapos, cigarras e micos) e lá no fundo, na maior árvore que vc vê, bem à direita, tem um casal de águias. Eu hoje dei plantão aqui deixando a filmadora de olho neles, mas eles não quiseram mostrar a cara. Devem estar caçando. Ou já se foram. Os bichos são bonitos na sua liberdade e plenitude. É o que digo a eles: "Eu não vou na sua casa, pra você não vir na minha!" Nada de domesticar bichos!

Depois das cervejas (já foi o tempo que eu passava de quatro unidades) é hora de tomar um chuveirão. Estou  apenas alguns metros do rio São Francisco e a água é tão boa, tão limpa  que além de brilho no cabelo, revigora o corpo.  E fica a esquerda na foto,  bem ao lado da namoradeira.




Com a passarinhada livre e solta, a musica mexe comigo por isto dou umas reboladas e com a vassoura servindo de microfone, canto junto com Maria Gadú. É perfeito! Faltou o que? Vamos comer alguma coisa? Pois então, que tal uma moqueca de camarão? Ou um peixe frito? Ou assado? Pacuman é feio, mas é super saboroso. E eu gosto de cozinhar! Na minha mesa diária tem muito peixe, queijo, sucos e produtos integrais.

Pronto, depois de arrumar a cozinha, me ajeito em frente à Tv e vou assistir a um filme. Gosto de documentários, histórias da vida real, uma boa comédia, desenho animado ou dos filmes que passam no canal Cult. E antes de ir dormir, uma passada pelas redes, no Site do Amores, uns vídeos no Youtube,  dizer "olá" para meus filhos pelo skype, falar com amigos dos cantos do Brasil em especial  de Portugal (Luísa). Aproveito e faço uma foto pela webcan, pra quem não me conhece. Helloo! Esta sou eu! Cara limpa, cabelo assanhado. Cara de ressaca, né?




E eu estou bem e tranquila. Nada melhor do que uma casa arrumada e organizada e a gente de alma limpa, pronta pra sonhar. Sim, hora de traçar o planejamento com o que pretendo fazer amanhã, estabelecendo novas metas, analisando os passos que já dei e agradeço pelo dia! O sono tá distante, por isto,  vou para um dos  livros na cabeceira (A vida sexual da mulher feia, - Claudia Tajes - não é auto ajuda) e estou quase dormindo, quando o celular toca. É ele quem dá sinal de vida. Falamos dos nossos segredos e atiçamos a saudade. Amanhã, ele chega. Diz que tem um presente pra mim. E eu espero que seja o próprio.

Como viu, gosto das coisas simples e sou muito objetiva no que faço e quero. As chances são poucas e por isto, no que faço, procuro sempre ir mais além. É assim a vida. E ela acaba, um dia a gente morre. Então, me esforço para fazer e ser melhor, porque passar por aqui tem que valer a pena.


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Morte Encomendada





O negócio era matar o sujeito. E Nildo queria tudo enterrado e sacramentado na esperança de ter de volta sua vida pacata.


Vivia encafuado com a  possibilidade de  protagonizar o fim daquele moleque desde a hora em que viu o merda lambuzar, de mão cheia, a bunda de Tereza. Ah, aquilo mudou sua vida! Tudo bem, o fato era passado de dias, já devia até ter esquecido,  mas ele não tinha engolido a afronta. Era o sapo grande demais grudado na goela a lhe amargar a boca, revivendo em cada segundo a hora mastigada. Maldito canalha que lhe deixara as vísceras reviradas! Agora vivia o ódio retido. Por isto, só por isso, vinha enchendo a cara da Cachaça do Brejo na esperança, não de cura ou descarrego, mas de amaciar a aversão que sentia por si mesmo, por se ver covarde,  inerte, abobado em seu brio ferido. Pensa cabeça, pensa, ruminava entre uma tragada e outra. Mas os sorvos da cachaça só lhe  incitavam as lembranças, apunhalando, feito  fogo, o desgosto cravado no peito.




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Nesta parte da lembrança, 
até prende a respiração.


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De tudo sentia nojo. Da voz escachada no ouvido da nega gostosa, do som do tapa, da mão girando, depois, de baixo pra cima, "tchaa", assim, seco e direto, chicoteando o traseiro da mulher. Depois, o  grito que ela deu, a risada que o homem soltou, o mugido seguro entre as mãos na ignomínia do riso. Nesta parte da lembrança, ele até perde a respiração. Acende o cigarro e mergulha no sangue fervendo das veias. As imagens continuam se formando. 


Agora vê a si próprio, a girar o rosto esbugalhando os olhos, a boca despencar, talvez até a tenha mantido aberta por m uito tempo! Ah, corpo sem ação, sem reação,  morto! Nada fez! guardou a cara do maldito!


A cachaça lhe apresentava apaziguamentos. Não que sentisse paz. Apenas porque lhe trazia a mente as mais variadas formas de se vingar. Um tiro, uma facada, talvez o machado fosse o mais certo, mas não antes de lhe cortar as mãos. Depois, vencido, se lambuzaria do sangue do execrado.

- Iria preso, mas o que importava isto? Tereza até podia chorar, mas amargaria o dia em que, balançando o corpo no vestido colorido deu brechas pra´quele sujeito. Se ele ficasse na cadeia, talvez ela vestisse preto, talvez enlutasse a alma até o fim dos seus dias. Não, não faria isto! Do jeito que tem se comportado, iria era tripudiar da sua dor, lembrá-lo de sua covardia, do seu desleixo, e no instante seguinte, se arranjaria nos braços de um outro qualquer. Pensa, cabeça, pensa!- ruminava Nildo, na volta cambaleante pra casa.


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 Sonho ou realidade?
Nildo encontra a solução!
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- Anda bebendo demais,- interrompe o vizinho ao vê-lo tentar acertar a chave na fechadura de casa -  o que tá acontecendo, filho de Deus?


Talvez, porque o homem tenha lhe chamado de filho de Deus ou porque já não aquentava mais, de certo foi que Nildo se abriu com o preocupado vizinho. Contou sua amargura, das suas dores, em todas as cores, falou  até das sentimentos mais íntimos, até no desprazer de tocar no corpo da mulher.


Agora não é dia nem hora pra resolver isto - respondeu o vizinho informado - mas amanhã, quando ocê tiver sarado desta carraspana, vem na minha casa, que lhe ajudo na questão.

A esperança fez Nildo dormir. Noite inteira, um sono só, sem resmungos nem pesadelos. O dia amanheceu rápido, cheio de energia, vestido de banho morno, barba e café. E foi caminhando pelo quintal que a solução foi colocada nas suas mãos: 


- A gente chama ele de Benfeitor Ubirajara - cochichou - acho que nem desse mundo ele é ! 


E lhe entregando um envelope fechado completou:


- Aqui tem sua apresentação e minhas recomendações. Ele não gosta muito de falação. Leva junto a foto do sujeito ouve tudo com muita atenção.  O homem é seco que nem couro esticado, ta acostumado com estas coisas. Vai te encontrar na rua de baixo.


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Cara a cara com o matador
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O homem era magro.  Até demais. Sentado sobre os calcanhares trazia no pescoço mais colares do que a própria Tereza que, vaidosa por si só, nem poderia imaginar ter. Fumava um palha, cuspia o tempo todo olhando ora pelos lados, ora de baixo pra cima, tudo no canto do olho. Lê as recomendações, chupa o dente, ejeta catarro no chão e cobre a gosma com o dedão do pé rachado.

- Fala o nome do morto - manda
- Teotônio Macedo da Cruz.
- Aponta a direção de onde ele esta -mandou de novo.


E Nildo, tremendo de medo e exaltação, apontou para o norte. O Benfeitor, ainda abaixado, estica as mãos e  dedilha os dedos compridos no ar, pedindo a fotografia.


- Vai pra casa -  disse após de mirar  a foto longamente - a morte já tá encomendada. De hoje, a um mês, ele tá morto. Mas vou dar dois tiros. Só dois. Se não matar, é porque não tem jeito.


A fala rasgada do Benfeitor ainda zunia no ouvido de Nildo, quando completou: 


- A paga. Você tem que fazer meu pagamento. Mas não quero dinheiro não, ouviu? Ocê vai ter que ir a igreja 30 dias, mandar fazer 30 missas, rezar pra mim em segredo 30 dias e no dia da morte do caboclo, ocê tem que tá no enterro e ajudar a carregar  o caixão! 


O olhar do Benfeitor Ubirajara, agora pregado no dele, não deixou dúvida, nem mais conversa: o assunto estava encerrado.Deu de costas e saiu, sem nem olhar para traz.



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Trinta dias cumprindo o pagamento! 
Se fazendo de fervoroso e rezando 
até para parente de quinto grau
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O tempo seguiu seu caminho de fazer rodar o relógio em abrir o dia e fechar a noite. Nildo, com a desculpa de querer paz pra toda família, mandou celebrar missa todos os dias do mês. Fez questão de espalhar a notícia,  se fazendo passar por  fervoroso e praticante, rezando  até parente do quinto grau.  E quando já duvidava da promessa do Benfeitor, a notícia veio lhe bater à porta: Teotônio morreu!


Foi de chapéu preto e cabeça baixa. Alcançou a alça do caixão, primeiro de todos e quase chorou, quando viu a cara do finado.  O homem estava esturricado! 


O povo comentava, assustado, a sina do coitado. Nasceu retardado, cresceu sem deixar de ser criança e o raio que o matou, veio duas vezes do chão. Um bateu do lado esquerdo, ele até pulou, mas a outra, a certeira, subiu, rodou e foi parar bem no meio do topo da cabeça, fazendo encher de brasa, em um só instante, o menino gigante.



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Foi sonho ou aberração?_________________________________________



Quem me contou esta história foi o Nildo. O pobre nem bebe mais. Anda atrás do tal do Benfeitor Ubirajara que ninguém conhece, nem nunca ouviu falar. Deve ser por isto que vive numa rezação sem descanso. Tereza diz que virar doido é coisa de família. Ela cuida dele, mas de medo, botou o marido pra dormir no barracão. Outro dia andou esfregando aquele traseiro enorme no vizinho. Deu um bate-boca danado. Mas isto... ah, isto é outra história!




VéiChico



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O Amor e a Vida



E o Tempo fecha suas comportas, parando o mundo, quando Santiago sai do escuro e dá de cara com Alice. O clarão, vindo da Lua, emoldura os corpos, frente à frente, no brilho e no cheiro da pele que respira por inteiro o estado ao vivo e em cores. Ela, com jeito agreste, enrosca pelo ombro encabulado e ele sorri "amarelo", na continuação dela. Silenciados de frases e complementos, absortos no pisca-e-abre do olhar curioso de se ver por inteiro, apenas sorriem. Enquanto se escaneiam, ao redor, emudecido e estagnado feito estátua, o Mundo Imperativo assiste ao espetáculo humano audacioso.

Foi Alice quem primeiro tocou levemente sua boca na dele, minutos depois. Seja bem-vindo à minha vida, meu bem!! - foi só o que disse a ele. Santiago sorriu com os olhos e retribuiu o roçado, num jeito satisfeito, ainda que meio de lado, com covinha na bochecha e tudo.

- Temos que ir – ela interrompeu – o céu ta escuro, vem chuva por aí.

Mas o destino, que tem pressa e por isto não deu trégua, embananou o caminho, aproveitando, quem sabe, do efeito enebriante que a emoção trazia. Pois, o que era para ser percorrido em linha reta, se abriu em círculos e viadutos, num sobe-e-desce de estradas cada vez mais confuso. Eles já tinham andado por horas, no "é aqui, é ali", até se darem por convencidos que estavam ao contrário da Cidade-Porto. E quando, madrugada alta, cansados, encontraram um lugar para parar e por as ideias e o rumo no prumo certo, foram recebidos por um sujeito sonolento, grudado na bíblia, para falar o que o destino queria:

- Vocês estão com sorte – arrematou. Só tenho um ultimo quarto e é de casal.

Aquilo não estava nos planos. O combinado era se descobrirem e se encontrarem no tempo de cada um...se este fosse o tempo certo. Mas o moço, que esticou a mão e entregou a chaves, se despediu sonolento, trancando o hotel lotado.

- Eu vou beber alguma coisa – disse Alice, assim que a porta se fechou.

Mas foi só quando entrou no quarto, depois do banho, que alguém, bem de longe, ligou o som e impregnou o ambiente. É a nossa música - concordaram, quase que instintivamente. Alice dançava, rodopiando, rindo e brincando. E foi numa dessas voltas que se virou, viu Santiago aos seus pés, sorrindo.

- Linda – ele disse. Você é linda!!

Então, ela parou e se ajoelhou junto e em frente a ele. E, como se quisesse se embriagar, sugou-lhe o cheiro do peito até o rosto. Frente à frente, ele a beijou pela primeira vez e desta vez, enlaçando-a pela cintura, nas mãos pelas costas, pelos cabelos, ele homem e ela sua mulher, encharcados um no pêlo do outro, em meio a cheiros, suores e a terra molhada da chuva que caia pela janela. De certo, dois seres lavados de suas dores, saudades, medos. Desnudados de complexos, conceitos e preconceitos, numa entrega lenta e saboreada, perfeita como todo Amor deve ser. Estava sacramentada a união dos que um dia estiveram separados, sabe-se lá por quê. Por isto, depois daquele, muitos dias amanheceram e anoiteceram, e com eles risos, emoções, descobertas, num amor doce e intenso, no cheiro do café coado, das panelas fervilhando, temperos na mesa posta.



Mas, tudo que tem princípio, tem meio e fim. E assim, o último dia, a despedida, também chegou. Isto porque ambos seguem horas, horários, contas que vencem, gente que espera, muita gente... Ambos sabem as marés de cada um.

Alice reconhece a exatidão do tempo. Santiago acha que as certezas têm que ser escritas como cartório, porque já andou a esmo demais. Na realidade, ninguém sabe nada de nada. A vida cobra, o tempo ri: buscar certezas a onde? Chega a ser inexato fugir da dor se esta faz parte do prazer. Mas é o que buscam!! E quem aqui, em sã consciência, dirá que estão errados? NInguém tem tempo a perder e todos se perdem no tempo. Mas voltemos. Eu só quero contar a história e não analisar o certo e errado de cada um.

Só tenho a dizer que Santiago voltou para seu canto e Alice para o dela. Como a vida é. Tum-tum-tum tem que se acomodar e esperar. Até que os pingos estejam nos is. O que acontecerá, só o tempo tem para demonstrar com certezas. São tantas buscas, todo mundo cansado de errar... Tem tudo pra acontecer, mas tem muito pra se jogar pra cima pra que tudo aconteça. Porque no mundo e na hora todos tem no compromisso o que cada um fez da vida.

Aqueles dias, em que foram apenas um, capazes de abraçar o destino e serem humanos, naturalmente humanos, agora clamam pela exatidão das cartas certas, a minimização de erros. E a roda da vida, implacável, ri desta besteira toda, dizendo que, no fim da vida, o que conta são as plenitudes vividas e não as coisas acumuladas.

Feliz, cumprida a missão por ter dito e feito o que queria, a Vida, irmã do Destino, retorna ao seu ritmo normal, com buzinas de carros e celulares que tocam sem parar, e deixa os amantes no tempo de cada um. Eles se vão, misturados ao zum-zum-zum das abelhas, dos cavalos desembestados, dos profetas, dos pássaros de fogo, as estrelas e do Tempo, do beijo soprado pelas palmas das mãos, dos sussurros e dos medos, do Rio e do Mar; agora atendendo aos chamados...

Até Deus volta a cuidar de outros incautos, pra quem sabe, tentar 70 vezes 7 mostrar o que ninguém tem coragem de ver. Foi Ele quem criou o mundo, mas este anda sozinho. É o jeito moderno de sobreviver. Ironia, não é? Muita ironia!!


- Tudo junto e misturado -

F I M
da primeira parte

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Terra de Pequi





Minha vida esta em cada pedacinho desse cerrado e não existe outro lugar no mundo, onde eu pudesse crescer mais forte, disse-me o homem Manoel  Antônio, naquela manhã de segunda-feira, quando me ajudava a empilhar as caixas do "Licor do Cerrado", pra eu levar pra distribuidora. E para ilustrar sua certeza, acrescentou que "quem não conhece, pensa que as coisas da vida são coincidências, mas quem tem raízes aqui, sabe reconhecer a comunhão dos seres". Como naquele dia, em que tudo, da terra ao céu, deu pra fazer parte de uma angustia. A angustia que latejava no peito de um menino de coração acabrunhado.

Começou desde que o sol, botando a cara pra fora,  clareando o chão, escancarou as nuvens cinzas de chuva, tristonha e fria, sobre a terra chorosa. Bem lá no alto, cabisbaixo, o céu parecia tão lento, que de tão jururu, estampava uma cara medonha.  Junto ao céu, descendo um pouco mais, o  vento soprava manso,  talvez para que as copas dos pés de árvores, compadecidas pela dor do menino, se curvassem em sinal de respeito. Pela terra e ao redor, um monte de bicho recolhido, cada qual no seu canto, cada qual no seu jeito de fazer silencio.  Das galinhas empoleiradas com um pé só à Japão, o cachorro, melhor amigo, que com os olhão comprido, ficou lá, rendido no chão. E bem no meio disso tudo,  tinha a casa e até ela, cheia de gente, feito dia de festa, escancarando sua velhice melancólica pelo buraco do reboco, nas silenciosas teias de aranha tecidas nos cantos das paredes de reboco. E para o menino Toninho, o conjunto de todas estas coisas, era o jeito do cerrado chorar mais ele.

Descobriu isto desde o início, quando Mariana, a mais velha dos cinco, com a cara amassada de tanto lastimar, mandou que ele fosse ligeiro, chamar Dona Zefa, a vizinha de cerca e, até lá na frente, quase no fim do caminho, escutou os gritos do pranto desvairado, sem dó nem vergonha da irmã.  Depois, Dona Zefa, cheia de espanto e assombração, chegou dando ordem pra tudo quanto é lado, fazendo até a irmã engolir o choro e ir  passar o vestido estampado, o preferido da mãe.  Toninho ainda estava intrigado, quando a negra Das Dores e Raimunda de Benvindo levaram baldes e mais baldes, cheios de água e sabão, pra dentro do quarto. Ainda, neste interím, Mariana, fungando o nariz avermelhado, mandou, mansamente, que os quatro fossem se lavar e eles foram sem saber direito o porque, mas fizeram filinha na porta do banheiro, sem reclamação, nem briga. Todos, da maior a menor, Maria Celma, Maria Célia, Maria Celina e ele, Manoel Antônio  que tinha os nomes do pai e da mãe, se banharam na águia fria feito o tempo e ficaram esquecidos no longo banco de madeira na porta da cozinha.

E bem que ele teria ficado ali, quieto, todo calado por dentro e por fora, só reparando na mexida das mulheres, de lá pra cá, de cima pra baixo,  mas não se aguentou, por causa do frio da terra que cresceu dentro da sua barriga, quando Dona Raimunda falou bem assim:

- A mãe docês morreu. Pegou outro rumo, foi encontrar com Deus, lá no céu.

De cara ficou abobalhado com as palavras dela, assim, sem ter nem porque, a repetir na sua cabeça, "morreu, foi encontrar com Deus". Um eco miúdo, a voz esganiçada fazendo morada dentro do seu ouvido, num repetir esquisito, com gosto de jiló esquecido na boca.  Nesta hora, o céu fechou de vez,  fazendo companhia, agarrado, ao choro das quatro irmãs. Mas só  quando a chuva desceu forte, ele começou a somar A mais B.

Ficou cheio de "por isso". Primeiro, quando foi pra perto da mãe escovada, dentro de um caixão de tabuas de madeira e, de pé mesmo, nem sentiu medo dela ver suas unhas recheadas de sujeira. Depois, quando encostou a cara bem perto da dela, para ver o que não acreditava, porque pra ele, só os bichos morriam, só os vizinhos lá de longe, só aqueles  que tinha ouvido contar nas prosas dos vizinhos e, nessas histórias,  "não tinha mãe morrida não". Por isso, estava pasmado. Por isso, ficou sem voz, por isso não saiu correndo de dor e pavor, ao deparar- se com a mãe de cara fria e  mãos atadas por cordão e terço, bem no meio da barriga. Por isso, descobriu que a medo da morte é a dor.

Só, era só por isso. Mesmo porque, ela estava muito diferente!  Não tinha aquele jeito de quem sente dor, não tinha girado a cabeça pra ver que ele tinha chegado perto dela. Não tinha sorrido com os olhos, não tinha falado que tudo ia passar. Ainda sem acreditar que as mães morrem, aproximou-se mais dela e chamou baixinho "mãe, mãe". Duas vezes. Mas ela continuou como estava.  Ai, um nó agarrou na sua garganta e dali não saiu mais nenhum som.

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 "Como Deus vai reconhecer a mãe?
foi a questão mais séria, por ser sem resposta, 
que tomou conta dos seus oito anos e dominou seu jeito na aflição.
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Quis desatar a aflição, primeiro pela raiva que sentiu da verdade na fala de Dona Raimunda, "morreu, foi encontrar com Deus", depois pelo medo do outro caminho que ele não sabia qual direção era, e ia até chorar, mas se lembrou que desde que o pai tinha sumido, era ele o homem da casa e, "homem não chora, resolve". E foi ai que ficou ao lado dela, a fixar-se na procura por um gesto, uma só indicação que como era aquele partir, de como deveria ser o caminho, a caminhada, o encontro com Deus. Horas rodopiando em idéias, salpicando em lampejos com esta ou aquela questão, fazendo perguntas e recebendo respostas na cabeça. Mas, desesperou-se, quando uma conjectura dominou outro rumo e dele não encontrou mais solução, por causadeque, por outro lado, se tudo tinha um jeito de ser, sua mãe emagrecera tanto, mais tanto, que "como Deus vai reconhecer a mãe?" foi a questão mais séria, por ser sem resposta, que tomou conta dos seus oito anos e dominou seu jeito na aflição.

O cerrado deu pra chorar mais alto, atirando com forças, lágrimas lá do céu e a casinha amarelada de uma janela e uma porta só, que agora guardava o murmurar de um bocado de gente apinhada, viu a aflição do menino, paralisado, naquela última questão sem resposta.

Ele não sentiu nem frio, nem calor. Não ouviu o buchicho das pessoas a compadecer do seu olhar perdido. Não reparou que Dona Zefa, queria porque queria, que ele saísse dali. No engaufiado de pessoas de todo jeito, Toninho, olho preso no corpo inerte da mãe, só escutava as questão do seu próprio coração devassado.

- Como Deus vai reconhecer ela? - perguntou em voz alta pra quem pudesse se interessar.

Mas devia ser porque o povo andava ocupado demais ou não gostavam de responder pergunta de menino, que não recebeu nem uma palavra de volta. Nada de nada.

Apôs aos seus pensamentos, o cheiro das velas e do café, a embaralhar-se com o perfume das mulheres,  o suor das pessoas, a água sanitária nas roupas, do cheiro do fumo de rolo queimando na palha de milho. E sabe-se lá, quanto cheiros mais. O resultado foi que seu estomago deu de embrulhar. Sentiu raiva do zum-zum-zum cochichado, da invisibilidade da sua pergunta, na lacuna suplicada por  sua voz.  Ia repetir a pergunta, com direito a falar grosso e tudo, quando Dona Zefa tombou, no meio da reza e ele, espremido, foi parar noutro lugar.

Encontrou Mariana na beirada do fogão, a soprar e remexer as brasas pra passar mais café:

- Mariana, como é que Deus vai reconhecer a mãe?

- Deixa disto menino, vai arrumar assunto! - respondeu entre uma fungada e uma soprada.

Mas Mariana, olha ela lá. Ela mudou muito, tá tão esmagrecida e acabada. Escuta, eu vi Mariana, vi desde o dia em que o doutor mandou nós rezá com ela em casa, a diferenciação. Vi que nem Dona Zefa, que era assim mais ela, reconheceu  a mãe. Cê não lembra, o povo falando, que ela tava com outra cara? Cê bem sabe que Japão é  cachorro da casa faz tempo. Ele sempre gostou da mãe, mas naquele dia que ela chegou, até ele rosnou pra ela. Cê lembra, num lembra? Mariana, cê tá me escutando? Fala então, como Deus vai saber que é ela?

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Mesmo com toda força empregada, foi deixado pra lá. 
O caminho, por assim dizer, o fim do velório e 
o início da estrada para encontrar com Deus, 
foi seguindo, feito boi indo pro matadouro.
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Toninho estava disposto a tudo pra botar a irmã pra entender sua preocupação, que resolvesse a tortura, reconhecendo o tamanho do problema! Mas ninguém parecia enxergar estas coisas.

- Se o pai tivesse aqui, ôces iam ver. Ele dava um jeito!  - gritou de aflição.

- Cala a boca, menino - berrou Mariana atando os braços franzinos entre suas mãos grossas -  Olha aqui, olha pra mim.  Escuta bem sério. O pai sumiu - e depois repetiu de novo - su-miu! Ninguém sabe dele. E ele, nem sabe de nós!

- Sabe sim, o pai vai chegá e vai levá a gente pra escola, ele falou que ia fazer...

- Que gritaria é esta? - interrompeu Dona Raimunda com aquele jeitão de mandona - vem Mariana, a chuva parou. Tá na hora do enterro sair. Chama seu noivo pra ajudar levar o caixão!

- Levar o caixão? Sair pra onde? - esperneou Toninho - o caixão com a mãe? Ah, num vai não! Assim não pode! Ela vai se perder!! - gritou com a força do homem da casa.

E não houve uma só das Donas, ou por perto ou de longe, que conseguisse segurar seu tormento, estirado, largado, rasgado, agora, entre os  gritos de solta, sai!  Não houve um só homem que desse conta do seu rompante. Aos berros, murros no ar, pontapés, mordida e até beliscão, Toninho se abriu, feito muro, frente à todos, na tentativa de barrar o cortejo fúnebre. Até Japão veio em seu socorro, esbravejando de todo jeito, a fazer com que paus e o "sai miséria" fossem atrasados, diante de uma bocarra cheia de dentes arreganhados.

Mas não adiantou. Mesmo com toda força empregada, foi deixado pra lá. O caminho, por assim dizer, o fim do velório e o início da estrada para encontrar com Deus, foi seguido, feito boi de matadouro. Sem nenhuma importância. Por isto, com a dor estirando dentro  peito, e sem caber dentro de si, correu desembestado, mato adentro, rasgando todo galho que via pela frente e só foi parar mesmo, debaixo de um pé de pequi.

- Mas, a vida tem coisas que a gente tem que aprender a ver com a alma! - disse-me o homem Manoel Antônio.

Porque foi estirado no chão que fez Toninho pensar na mãe, no tempo de saúde. Uma mãe de olhar manso, que gostava de acarinhar sua cabeça e dizer que ele era o homem da casa, até o pai voltar. "Só ela acreditava, comigo, que o pai ia voltar".  

Só ela sabia tirar o medo dele, quando o trovão fazia festa no céu. Só ela sabia abraça-lo e parar o medo do finado Balbino. Só ela guardava o segredo de quando ele tinha estes medos. Só ela tinha um jeito  diferente de banhar  Japão sem ganhar uma rosnada. E neste reviver, neste carinho de saudade, a alma de criança passeou pelo quintal, adentrou no pasto, nos tempos de pitomba, jatobá e manga, em que todo mundo se lambuzava até os beiços! 


A mesma alma, arfando descompassada, reviveu os gostos das fininhas tiras de mamão verde, que depois de enroladas feito cachos, eram costuradas umas com as outras, ligadas com linha grossa  e viravam doce. Mastigou a goiaba vermelha, boa de comer, boa de catar bicho. Lembrou-se de outras épocas, das vezes em que estavam lá no mercado, nas ruas da cidade, espalhando as frutas do quintal, fazendo dinheiro para o arroz, óleo, carne e feijão, com o que o cerrado dava de graça pra eles. "Mas, o bom mesmo", acrescentou com um brilho na cara, "era no tempo de pequi!"

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Esta era a maior fartura que o cerrado dava pra gente. 
E foi ai neste pensar da alma que Toninho descobriu a resposta.
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Naqueles dias, afundavam no mato pra catar a fruta no chão e iam vender na feira. Era a maior alegria! Dava boró e satisfação. Ele até sentiu o cheiro da feira, até escutou a voz da mãe: "olha o pequi gente, tá maduro e barato". No reviver destas emoções, conseguiu, naquela hora, se alegrar de como ela chocalhava as moedas dentro do saco de pano amarrado na cintura gorda. Ela era tão divertida! Cheio de lembrança e satisfação, comeu de novo, o melhor Arroz com Pequi da vida e tornou a dar risada, quando se lembrou dela dizendo que "Pequi é bom pra memória" e que o povo só entendia, quando arrotava o almoço, laaa por detardezinha... Dona Maria Antônia, Ramires,  minha mãe, era a Tonha dos Pequi. Esta era a maior fartura que o cerrado dava pra gente. E foi ai neste pensar da alma que Toninho descobriu a resposta.

Ele viu, lá de longe, o caixão já preparando pra batizar a terra. Ordenou, apontando, que  Japão fosse na frente, " pega,  Japão, pega" e o cachorro, obediente, espalhou gente pra todo lado. Conseguiu ser levado à sério, logo de cara, pois foi com a força da decisão, lavado de alívio, que chegou. E com autoridade do "homem da casa" deu ordem pra tudo quanto é gente e por isto, não houve outro jeito, senão abrir o caixão, para que se resolvesse assim, a questão encontro.

- Agora sim, Mariana, Deus não vai ter jeito de errar. Ele vai reconhecer a mãe, a Tonha dos Pequi, assim que ela chegar, porque ela vai estar com "estas flor" na mão. E dizendo isto, depositou sobre o peito da mãe, um amontoado de  flor de pequi.

Depois,  em casa, com o coração repousado na paz do dever cumprindo, na questão resolvida, o pequeno grande homem Toninho se entregou a um sono gostoso, onde pode até ver Deus receber Tonha, bem na porta do céu. E foi com tanto carinho que Ele pegou estrada com ela, que ele pode, pela última vez, escutar as deliciosas gargalhadas da mãe.

- E pra completar aquela paz - completou o menino homem -  Deus olhou nos meus olhos e falou bem assim: acorda Manoel Antonio, acorda meu filho, já pode ser um homem junto ao teu pai, que agora chega pra te buscar.

E quando Toninho acordou gritando "o pai voltou, o pai voltou" e Mariana fez aquela cara de quem pensava estar brotando na cabeça dele mais uma esquisitice, ficou guardado na memória dele, a felicidade dela, de Maria Celma, de Maria Célia e de Maria Celina, porque o pai agora era empregado de salário bom e tinha um caminhão apinhado de feira e presente.

E isto foi só por um tempo, porque quando o céu, abriu um sorriso plácido e gigante e dele saiu o sol de todos os dias, e levou Toninho e toda família pra cidade e pra escola, alguns anos depois, trouxe de volta o homem Manoel Antônio que acreditava que  cerrado guardava o melhor das suas raízes e  só ali era o canto dele.

- Entendeu Ramires? - perguntou-me ao depositar as mãos sobre a ultima caixa do carregamento do Licor do Cerrado,  o puro sabor do PequiE eu que, não tive como conter a emoção, acenei que sim com a cabeça.

Quando botei o caminhão na estrada, tive a sensação de estar transportando mais do que garrafas com licor. Parado, no meio do caminho, me deixei olhar pr´aquele mar de céu azul, do verde do capim, do colorido dos pés de frutas, os pássaros e flores, nos outros Japões que vieram, na terra impregnada de Tonha dos Pequis, na obstinação do menino Toninho, no homem Manoel Antônio que dele se formou e tive a certeza absoluta de que os seres se unem na dor e no amor, e estão aqui, neste cerrado de Deus, nesta Terra de Pequi.

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(Esta Obra está Registrada em nome do autor Valéria de Melo Correa sob o número 137709879275981800, o autor tem um Certificado Digital de Direito Autoral que atesta este registro.)

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