Na ponta dos dedos




João saiu batendo o portão, depois que Alice mostrou pra ele a sua versão da história.

“Deplorável, o ser humano” foi como se expressou. “Sou um homem de conduta ilibada, não sou menino como escreveu. Diz pra eles que você é sem educação e quando entra não cumprimenta ninguém. Diz também que é insegura.” E antes de lhe dar as costas, soltou a hermenêutica sobre os dois lados da questão; ação e reação. Saiu assim, pisando duro, falando de coração magoado e com o peito cheio das raivas trincando-lhe os dentes. Escreveu “bye” e se foi.

Alice ficou atônita, estagnada diante daquelas interpretações na tela. Por quê tanta grosseria? Tomou litros de água rodando de um lado pro outro na tentativa frustrada de ver a situação com os olhos dele. Achou melhor ir lá e apagar “belo” porque perdera o encanto e “menino” porque ele só queria ser o homem sério. E ia desligar o PC, quando o MSN piscando, chamou-a de volta:

- Arruma as suas coisas, você vai fazer matéria no Rio – disse o coordenador.
- Quem?
- Não é quem, é o que. O cara vai fazer um documentário. Fechei as entrevistas com ele. Você é boa nisto. Fica esperta, a tensão elétrica lá é 220 Volts
- Você quer que eu vá pra Rio de Janeiro?
- Isto! Mando o carro te pegar daqui umas 3 horas, pode ser?
- Desculpa chefe, mas eu não vou não. Não sou de cidade grande.

E no você vai, eu não vou, a conversa que rendeu metros de tela, fechou pro norte, porque na tarde seguinte Alice estava dentro de um minúsculo avião à caminho de Cabrobó, cidade do sertão do estado do Pernambuco e sem nem imaginar o que aprenderia em apenas dois dias.

Lá, onde sol nasce parecendo querer partir a terra ao meio, Alice revisou o roteiro que consistia no depoimento de antigo morador: de como vivia do rio, traços da sua vida, a transposição do São Francisco, enfim, a rotina. Então, de câmera, protetor solar e baton, subiu na rural e foi atrás do tal sujeito. A poeira, numa combinação arrasadora de suor e creme, fez com que os primeiros minutos de estrada trouxessem o arrependimento concreto por não ter aceitado girar pelas ruas e mares do Rio de Janeiro. Estava martelando isto na cabeça, quando aqueles dois meninos, surgindo depois da curva, fizeram sinal pro carro parar.

- Dona, leva a gente ai – pediu o menino ofegante – só até na próxima porteira.

Dois garotos, de no máximo uns 10 anos, estavam andando a cavalo. Alguma coisa tinha assustado o animal que, no pinote, mandou os dois pro chão. Com o tombo, o que estava na garupa, torceu o pé e o companheiro já vinha carregando-o nas costas sabe-se lá, há quanto tempo! Detalhe, o que carregava o machucado era cego.

- Pra que médico? Gasta isto não. Só torceu - disse a mulher na casinha da roça. – amanhã ta bom de novo. Vou fazer um chá pra ele beber. Poe umas erva ai em cima desse pé e fica certo. Assim, não vai ter dor.

Na casa que entregou o machucado, a turma da reportagem foi pra beira da cisterna tirar poeira da cara, enquanto Alice e o menino cego estavam cheios de afinidades pra trocar. Já nasci assim, disse ele enquanto queria saber detalhes da cidade dela, do mundo que vivia, das coisas que gostava e conhecia.

- E por que chamam você de Delegado? – Alice interrompeu
- Porque eu tomo conta de tudo. Não deixo nada de ruim acontecer. – E fazendo continência afirmou - Tou sempre alerta e quando a coisa é triste, faço assim – estalou os dedos – e some! - terminou largando a frase em um riso gostoso.
- E você não fica triste nunca, mágico Delegado?
- Só quando dizem coisas que eu não sou.
- E o que você não é?
E ele respondeu sério, como ser fosse a coisa mais comum do mundo: “Eu não sou cego. Eu enxergo diferente.”

A conversa estava solta, o pessoal já tinha entrado no carro e Alice deu tiau pro pequeno:

- Você gostou de mim? - ele sorriu ao perguntar
- Claro! Agora você é meu amigo
- E quem é você?
- Como assim, eu já te falei um monte de coisas a meu respeito. O que você quer saber mais?
- Quero ver você – disse esticando a mãozinha.

Alice se ajoelhou e colocou a mão dele no rosto dela. Os dedinhos do menino mapearam-lhe os cabelos, os olhos, a ponta do nariz, a boca. Depois com as duas mãos, torneou-lhe a face. Fez isto com a ponta dos dedos, contornando cada pedacinho do rosto dela, como se esculpisse a parte que tocava. Ela devolveu o gesto, só que, talvez pra ver igual ao menino, fechou os olhos. Daí foi que sentiu a alegria dele. E pode experimentar na singeleza deste toque, toda a beleza daquela criança, na vida tilintando, o mágico, que tira a dor, que some o triste. Ela estava diante de alguém que mesmo não tendo nada, era puro e feliz. E ainda que vivesse no mais obscuro isolamento, detinha poderes só pra ver. Chegou a sentir aquele silencio que eleva a alma da gente. E quando abriu os olhos, ele sorria.

- Você é mais bonita do que eu pensava – disse ele
- Acho que gripei – respondeu escondendo a emoção
- Por que você tem que ir embora, se eu gostei de você? E eu sei que você gostou de mim. Tou vendo no seu coração.

Alice beijou a palma da mãozinha do menino.
- Ah, Delegado, porque moro lá. Tudo meu está lá. E vou guardar você aqui, ta bom?
- Então me dá uma foto sua pra eu ti ver toda hora que sentir saudades?

A foto que deixou com o pequeno Delegado trazia estampada, ela e os filhos, que Alice explicou pra ele tim-tim por tim-tim, com todos os detalhes. Levou dele, a pureza dos que vêem com a alma, dos que ainda sonham e querem sentir quem é você. Na ponta dos dedos.

Em casa, depois de copilar a matéria do trabalho, foi rever os amigos. Dieguito39, Joice, Rosana, Sissym, Romorena, Lilika, Tulipadourada, Rebonelli, LuLei, Lua Nova, Vividiniz, Ebrael, Maria Souza, Rita Costa, Principell Encantado, Lison, Helena, Victor, Márcia Canedo, Joicinha, Luiza, o blog da comentarista, Denize, Leila,Lucas, Claudia, Tatiana, Lilian, Nakamura, Sidney, Marli, Amooorrrr... tanta gente, seres assim que a gente vê na ponta dos dedos e se apaixona. Pura e simplesmente.

João? Ah, ele se foi. Diferente do Delegado lá de Cabrobó, João que é do Rio de Janeiro, tem uma vida cheia de pedras e assaltantes; não vê as coisas na ponta dos dedos. Lá não existe isto. Tem de ficar alerta o tempo todo. É porque tem o medo no bolso. A vida faz isto com quem vive em muralhas de pedra e asfalto. Por isto, preferiu cortar, pela raiz, o que achou duvidoso e saiu, por ai, soltando tiros pela boca. Mas ela ainda pode vê-lo, uma última vez, dissolvendo-se no meio dos megas e bytes da net, no estalar dos dedos, naquela curva, bem na tecla “delete”. É um bom homem, pensou. Ainda será um grande menino!

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Acorda Alice!


foto: Alice e o espelho




Alice vivia de casa pro trabalho, do trabalho pra casa. Já fazia tempos que abnegara de uma série de regalias, porque sua alma estava triste. Vivia assim, criando pretextos pra abrir os olhos pela manhã e reencontrar uma estrada. Foi quando bateram no portão.

- Seu nome é Alice? – perguntou diretamente
- E você, quem é?
- Meu nome é João. Quero ser seu amigo.

O fato de ele ter batido à sua porta não foi exatamente a questão que mexeu com ela. Nem por ter sido o primeiro a fazer isto. Foi o jeito dele de ser. João a presenteou nas coisas em que mais admirava em uma pessoa: o português correto, o raciocínio coeso, a direção segura no que fazia. Conseguiram se inteirar um do outro. E em pouco tempo as conversas se tornariam mais intensas e os encontros, com horário marcado. A expressão dos sentimentos também. Conseguiam dizer “hummmm” e ali ser tudo.

Era caso pra se sentir. "Existe uma emoção no ar", diziam entre si. Os dias vieram realmente nascer para Alice e com eles, todas as cores do arco íris. Posso até dizer: foi amor a primeira palavra.

E o que a perspectiva de um afeto não faz nas cabeças das pessoas? Que derrame o primeiro suspiro àquele que nunca viveu este dia. A cabeça fica revirada, os problemas tornam-se pequenos e o que era sóbrio, passa a inexistir. Alice prendia o ar, para que os pés lhe assentassem no chão, mas o coração, feito carruagem, estava desembestado. Agora era se permitir ir mais adiante.

Ela achava que a inteligência de João era por demais aguçada. O homem era perspicaz, sabia o que queria. Muitas vezes acreditava ouvir o pensamento dele, querendo passar palavras, ir direto ao ponto. Noutras, o assunto desviava, mas ele se controlava, sem perder a direção, levando Alice pelas mãos, delicadamente, ao “x” da questão.

Marcaram de se encontrar, naquela noite, às sete. Ele chegou primeiro e escreveu sua aflição: “você está 27 minutos atrasada”, e continuou: “será que espero?”, Depois começou a contar: “43 minutos de atraso”, “44 minutos de atraso”, “45 minutos de atraso”, “estou ficando com saudades”, e foi o reclamar no minuto 64, que ela entrou. “obaaa... um min”, respondeu ele, e na cabeça de Alice, João fora fechar a porta.

- E esta noite? Você sonhou comigo? – perguntou
- Não - respondeu - você já é o meu sonho. Não preciso dormir pra ter você dentro de mim.

Dali pra frente a noite foi intensa. A conversa tomou forma arrebatada, os dedos, no teclado, cochicharam volúpias e sentimentalismos. E foi querer se desvendar que Alice enveredou por um chão antes apagado e as lembranças brotaram feito sal na sua carne. Tudo porque contou pra ele um segredo que nunca confessaria. Dai, perdeu o fio da meada. O tempo fechou e as chuvas desceram com força, balançando as janelas, arregalando o céu em prata. Ele pediu, ela ligou:

- João - disse tentando esconder o choro - a chuva esta forte e tenho medo.
- É você Alice? - atendeu ele - sua voz... você está melhor?
- te liguei mais para que escute o barulho dos trovões - foi só o que disse.

Aquela foi a primeira e única vez que os amantes virtuais se falaram. Depois disto, o tempo fechou bravamente. Do céu vieram os raios, trovões, ventania, o apagão escureceu o Brasil e a tela do computador. Sozinha, em sua cama, Alice se entregou a João porque já não tinha medo.

Não posso dizer que Alice achou aquilo normal. De manhã, bem cedinho foi perguntar no Google que sensação era aquela. Se natural. "Sim, é natural. Hoje em dia, o mundo virtual funciona como o real", foi a resposta quem a encontrou.

O tempo se encarregou de modificá-los. Alice pensou nas fotos. Chegou imaginar a cena do dia em que estivessem cara a cara e não se agradassem de si. Foi refletir no espelho as formas reveladas no jpg de 900x600 pixels e atestou; sim era ela mesma. Não havia mentiras nem photoshop. Mas alguma coisa aconteceu, de certo, para que João se portasse de outro jeito.

João diz:
*que jeito?
Alice diz:
*seco
*direto
*curto
João diz:
*o msn exige objetividade
*não estou seco.

Depois deste dia, o trabalho e as obrigações da vida real a afastou da tela. Foi encontrar João, um dia depois, completamente modificado. Ele a acusou de modos que ela não sabia responder: “sua mania de”, “suas atitudes”, “lá vem vc...”. a intitular-lhe de estilos e coisas jamais faladas. "Como pode julgar, insultar, se nem vê os meus olhos?" foi o que disse pra si mesma.

Agora, ela acha que ele a deletou. Ele acha que ela fica escondida dele. Assim, se perderam no céu virtual até que a realidade, se quiser, os encontre. Mesmo porque, no virtual, os arquivos se sobrepõem rapidamente e fica difícil refazer tudo de novo. Melhor seguirem. A vida esta indo por ai mesmo. Até já disseram que, em um futuro bem próximo, será assim: sonhos, desejos e perdas em um só clique, na velocidade dos megabytes.

Enquanto o mundo virtual gira deixando toda terra meio que bêbada, o sol abre mais um dia e enche as veias do real: acorda Alice, este sangue é seu!

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O coveiro, o rio e eu




Depois de duas mortes, ainda mais daquele vulto, há toda uma reconstrução a ser feita. E não se volta pra estrada do mesmo jeito que se foi. Com a batida, nossos pedaços caem tão longe e se espatifam em bocadinhos tão miúdos, que fica difícil reintegrá-los na sua forma original. A palavra “nunca” toma forma de realidade e vai para onde os sonhos morrem. Assim, desse jeito assim, fechei a casa, as minhas portas e janelas e lá me consenti por tempo indeterminado. Perdi o tempo...

Alguém bateu no portão. Uma, duas, três vezes. E no dia seguinte no mesmo tom. Fui espreitar: era o coveiro.

O intitulado enterrador de corpos da cidade é um velho subordinado da profissão. No dia do sepultamento da minha mãe foi protagonizador de uma cena bizarra quando, escorado sobre o caixão, parou o trabalho e debulhou: ganhava pouco, o prefeito era do mal, trabalhava sem condições e a família? Tudo na maior miséria! Depois, de dentro do túmulo, resguardado por estátua de um anjo de bronze, gritou:
Tem uns ossinho aqui! Cês quê vê?” e saiu de lá com um pedaço de pano na mão: "Era da vó docês?" No final apontou: “botei tudo naquela quina ali, oh!”. O conversê só parou quando, convocado no ouvido, levou umas notas de real pro bolso. Mas, queria mais.

- Tá cheio de mato lá – disse chupando o dente – mas arranquei tudinho.
- O senhor quer mais dinheiro, moço?
- Esse é outro serviço, dona. Agora vale 30 real. E mais 10 por mês pra eu molhar lá todo dia.
- O prefeito falou que não devo te dar dinheiro não – menti ao dar-lhe as costas.


Mas foi só entrar, que a raiva veio de cheio. Rodopiando pelos cômodos da casa,entrei e sai de tudo quanto é canto. Já não cabia nem dentro do quarto! Sujeitinho besta, achando que é dono! E no meio deste pensativo ruminante, decidi que a partir dali, seria eu a zeladora do túmulo da minha mãe. Portanto, era clarear o dia que - de regador verde, boné e óculos escuros - lá estava eu, a caminho do cemitério.

O Jardim da Saudade fica à poucas quadras da minha casa. Escolhi fazer o trajeto a pé,pra tomar ar, pegar o fôlego adormecido. Mesmo indo silenciosa, sem nem olhar pros lados, com o tempo ficou difícil não reparar nos olhares intrigados, nos cutucões nas esquinas, nas perguntas de curiosidade: “Uai, cê fez horta?” Mas valia a pena. Lá, em meio às lembranças, extorqui a minha saudade de outras formas. Eu não sabia, mas ali começava a dar os primeiros passos pra fora da hibernação.

Por outro lado destas minhas idas e vindas, tinha o coveiro que não esperava que eu fosse reagir assim. Primeiro, deu pra ficar me observando por traz dos outros túmulos. Depois, a chegar antes de mim e a ocupar as torneiras onde eu enchia o regador de água. Passei a dizer Bom Dia! e ele resmungava qualquer coisa. Voltei a usar fones com as melhores sonoridades musicais. E ele interpelava o caminho. Desviei-me da sua sombra, quando ele se aquietou na butuca.

E eu era implacável. Não faltava nem no domingo. Descobri que cemitério não dá medo e até passei a cumprimentar os mortos, assim que chegava. Às vezes cantarolava e ensaiava uns passinhos de dança, entre um túmulo e outro. Cheguei a pensar na possibilidade de ficar “amiguinha” do moço, afinal, perdão existe. Sim, podíamos ser amigos e um dia eu ia passar aquela bola pra ele. Mas não esperava pelo que viria a acontecer.

Naquela manhã eu fui me adiantar. Viajaria no dia seguinte, portanto, tinha que caprichar na aguação. A grama estava quase toda verdinha. As flores, plantadas por mim, nos nove cantos, já estampavam brotos. Sim, eu me sentia feliz ao ver que, efetivamente, ali surgia vida. Porém, naquele dia, algo estava errado: o local fedia... E no fim da viagem, assim que desci do carro, o contra-golpe veio por um terceiro sujeito que destilou sussurrado o ocorrido: o coveiro jogou veneno na sepultura da sua mãe.

Na passada apertada, mesmo trêmula, caminhei até o cemitério. O coveiro estava na porta quando entrei. E lá, bem no cantinho do muro, pude ver o ato devidamente comprovado: os tapetes de grama amarelados e revirados e somente duas das pequenas mini-árvores de flores, inteiramente secas e sem nenhum botão, tudo devidamente pulverizado por veneno pra matar mato! Eu tive medo quando ele olhou pra mim e sorriu.

Diante da imensidão do rio, pela primeira vez, eu chorei de verdade. Queria cair naqueles braços, deixar-me verter na imensidão do azul, das cachoeiras, nas corredeiras. Aquelas águas eram minhas. Todas. Chorei por minha mãe, por meu pai, pelo coveiro e por mim. Mas o rio me disse pra eu não ligar pra aquilo. Mostrou-me as pedras que seguram as águas nas cascatas e logo mandarei colocar ardósia no lugar da grama morta. É só parar de chover. É só eu parar de chorar. Amanhã deve nascer o sol.

Moro no mundo, porém, ele sempre me surpreende.

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A Força do Vento

Esta é a continuação de "Chove no tapete verde do meu quintal..."



Foi no beijo, recheado de veneno, que a mulher nada virtual, o abateu de vez. Dias antes, tinha lhe jurado que o tratamento era besteira, que ele já estava bom para lhe passar os mundos e fundos a que se propôs desde o início. Depois, quando não conseguiu mais dinheiro, arrancou seu coração ao dizer-lhe que queria ser indenizada pelos “serviços prestados à sua velhice e doença". E, se ele voltou para casa com um restinho de vida, deve-se a anônimos que o socorreram, àquele momento de horror.

Fui ficar com ele no hospital.

Estava magro e abatido e suas mãos tremiam mais do que de costume. Não perdera o jeito de juntar todos os dedos pra tentar explicar seu ponto de vista. Mas, suas palavras, misturadas com tantas lembranças, não o deixavam que fosse completamente entendido. Suas palavras, frases.. eu não entendia! Seu peito abatido estava ferido de todas as formas. Sim, a linda história virtual rasgara suas cortinas e aquele homem enorme, lindo, tinha nos braços, pernas, mãos e pescoço tubos, agulhas e fios. E usava fraldas. Sim, meu pai agora era o meu bebezão.

Nos dias em que lá fiquei, assisti aos delírios de cada pedacinho da sua história, numa volta ensandecida ao passado de frases emboladas e repetidas. Tentei participar, me fazendo passar por caroneira, quando, como motorista de caminhão, ele começou a vida: “aperta o pé, meu bem, que eu daqui me seguro!” E puxava assunto na “boleia” : “Viu pai, o senhor venceu, construiu um tanto de coisas!” e ele sorria, fazendo que sim, com a cabeça. E dirigia.... Eu, mesmo que chorasse em todos esses momentos, ora brincando, ora elogiando seus feitos, ainda acreditava, sim eu acreditei, que ele ia sair daquela.

Numa tarde, ele disse que queria se assentar. “Xentá” foi o som que soltou. Chamei minha filha e cruzamos nossos braços nas costas dele. “No três, pai”, e vrupt. Meu bebezão enorme, diante do desejo realizado, olhou pra mim, pra minha filha e arregalando os olhos num grande sorriso comemorou: “eu xenteeei...”. Sua vitória, nossa última gargalhada... Mas eu ainda não acreditava. Porque ele era resoluto. Não, nunca aceitou sua condição. Arrancava os tubos e fios, toda hora queria se levantar: “Vão bora”, mas não aquentava e ficava prostrado com metade do corpo dependurado na cama. Um absurdo de sofrimento! 

“Fala devagar pai, estou aqui” gemia meu coração, quando ele, agarrado às minhas mãos, formulava frases indecifráveis na ânsia de se fazer entendido. Daí foi que eu, miúda e pequena, entregue a dor maior, dei pra pedir o fim daquilo e, no silêncio indecifrável daquele açoite estampei, enfim, o meu desespero: Deus acaba com isto!

Ela entrou no quarto e ajoelhou-se diante dele. Alisando-lhe os cabelos brancos, mansamente, agradeceu pelos filhos que conceberam e acrescentou que não havia restado mágoa e que a perdoasse também. Frisou pra ele, que a vida é passageira. “Tá tudo bem, fique bem, tá tudo bem”.  Assim, escutando minha mãe, ele se calou e se deixou levar.

No entanto, nem o tempo tinha selado estas dores, quando a agonia deu as caras e, de novo, levou minha mãe, poucos meses depois, doída pela saudade. Como um passarinho, de tão pequeninha que estava, rumou noutra estrada.

“Pra onde a senhora foi, mãe?” 

Lúcida, fez o sinal da cruz na testa de todos nós que ficamos. Bem lá, bem ao meu lado, simplesmente fez assim: o sinal da cruz em um por um dos oito, daí os olhos se fecharam e a maquininha rabiscou a linha reta, com aquele som horrível apitando o infinito... acabou.

Acabou. Acabou. Acabou...

Já, na casa que era deles, dentro e remexendo no guarda-roupa da minha mãe, encontrei dependuradas, ainda, as roupas do meu pai. O amor dela! Ali, delicadamente escondidas, preservadas, todas limpas e passadas. E ao retirá-las, todas pra doação, abraçada a tantas peças com o cheiro deles, milhões de lembranças com o jeito deles, me deixei sucumbir, tombada diante da imbecil realidade a qual eu nada podia mudar.

Daí, eu caí. Geral. Corpo inteiro, alma inteira, desabei. Estava prostrada, enfim, derrotada.

Da moça nada virtual só soube que tinha feito a vida. Já tinha carro, loja bem montada no centro da grande capital do Paraná, com direito a cartões e festas. Da corja que ela um dia disse se chamar família, todos se sentiram lucrados, avó, irmão e os tais baibes.

A realidade diz que são bandidos e nossa família foi sorteada pra ser sugada por eles. E pra preservar o que restou de nós, decidimos que quadrilha a gente esquece. Devíamos ter dado o grito antes, agora era renegar, encolher e se afastar. Acabou!

Por um tempo, perdi meu caminho. Mas a vida continua e lá fora dá o grito, cutuca, chama e implora. Tenho que retornar nos meus filhos que crescem e mesmo longe de mim, fazem tudo ir em frente.

A morte inexorável um dia irá abraçar-me, levando-me ao encontro daqueles que tanto amei. É nisto que meu conforto. Ou será uma ilusão para manter-me edificada? Não sei.

Hoje, fico horas olhando para o meu quintal pintado de verde, sem pensar nada. Concluir o que? Estes dias choveu e brotaram verdes pra todo lado. Tem dia que as árvores choram. Tem dias que não. Diante da força da ventania, elas se curvam. Redimem-se  da sua prepotente arrogância em querer roubar o sol só pra si. Na calmaria se espreguiçam...

Lindas bailarinas coreografadas pelo vento. Deve ser para cingir a imensidão do céu de esperança. É, deve ser mesmo.


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Chove no tapete verde do meu quintal...



Depois que ele cresceu e a cabeça já estampava o prata da idade, resolveu remoçar. E começou aos setenta e cinco anos de idade, pela tinta preta até nas sobrancelhas, logo que se enamorou da foto enviada pela internet.

Na ânsia de viver, negligenciou a própria saúde, deixando de lado o alerta do avanço da doença. Viajou mais de mil quilômetros pra ver de perto a menina que o chamava de “lindo”, “gatão” mesclados de beijinhos libidinosos. Entregou-se a essa luxúria, salpicando-a de presentes variados e negando-se em ver, se da parte da internauta, era amor ou dinheiro. Por sua atenção, comprou-lhe um carro zero e ainda adotou para si as crianças da nova mulher nova.

Recebia dela, afiançada por doar-se a um homem quarenta anos mais velho, o codinome de amor, sussurrado até pra quem não quisesse ouvir. Dos companheiros que não se afastou, comprometidos tapinhas nas costas, somadas à piadas indecentes em busca da fórmula mágica daquele abate. Mas era ir embora, com aquele jeito de andar cambaleante que só a idade sabe trazer, para que os cochichos de gozação passassem a fazer parte do prato do dia. Não adiantou os pedidos, o alerta manso da família. Preferiu cobrir o espelho das mil desculpas de felicidade para mascarar o óbvio.

No início a família achou que passava. Afinal, sempre fora um galanteador, mesmo que rigoroso com a família, frequentador dos mais altos níveis da sociedade. Um colecionador de méritos por se fazer vencedor de muitos empecilhos e ter construído um respeitável patrimônio. Era mais uma fase, dava pra aguentar. Iriam zelar por sua integridade física, como sempre. Tudo parecia estar sob o controle do olhar, até o dia em que ele anunciou sua mudança pra casa da namorada nada virtual.

Fomos almoçar juntos. Seu jeito trôpego escancarava evidências da saúde abalada, o carcinoma não lhe dera trégua. Ele queria que eu acreditasse que a moça o amava: incondicionalmente. Pra não escutar, volta e meia, interpelava-me com causos das atitudes nobres da moça. E simulava felicidade. Estava ótimo! Vi, nos gestos dele, um pedido de "eu preciso acreditar nisto!"

Expus, da forma mais carinhosa que pude que ele deveria ser cauteloso. Que o maior patrimônio da vida dele, era a família que ele estava deixando. A mulher, aquela com quem se casara, estava um trapinho de dar dó. Já aceitara a separação, topava amizade, mas do jeito que ele estava fazendo, não estava certo. Tentei, como último apelo, lembrar que o natal estava chegando e se ele não estivesse presente, como os filhos e netos iriam administrar sua falta?

Fez que não escutou; o natal seria com a moça e os "baibes".

Ao vê-lo se esforçando em ser convincente na paixão concebida, mãos tremendo pelo Parkinson, o cheiro forte da doença... me calei. Aquele homem à minha frente fazendo-se de forte cansou-se dos filhos, da mulher e arrumou outra família já pronta. Na que criou larga o peso, o tormento: é o fim. Na pronta encontra redenção. Quer renascer no tempo que lhe resta.


Como posso pedi-lo pra não sonhar? Como dizer que está difícil vê-lo em um grande engodo, se ele, fingindo um sorriso, nada escuta, não quer ver? Quê poder de argumentação eu tenho se, provavelmente, fui o alvo das suas orações, nos pedidos de alívio? Como posso pedir ao meu pai que não nos abandone, se a sua atitude diz que se cansou de mim, dos meus irmãos, da minha mãe, da nossa gente?


No final, ele disse que iria reunir todos e repartir os bens. Perguntou-me o que eu queria. Mas eu, entortada diante da situação, deixei que ele resolvesse coisas de patrimônio com o resto da família.

Na despedida, no elevador, ele ia me beijar e eu ia implorar, mas a porta fria, implacável, fechou-se na nossa frente, indiferente da minha tentativa de poder impedi-la, com socos e chutes. Desceu e nos separou. Igual a vida.

Em casa procuro companhia. Leio e releio o desabafo de Clarice, Mirian R, Isabela B., Salomão e outras histórias de vida que guardei no meu caderno de recortes. São amigos virtuais que se sentam hoje a minha mesa pra falarmos de dores e experiências.


Chove no tapete verde do meu quintal...

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Adão, Eva e Eu






Eu o vi assim que dobrei a esquina. Como não o identificara com nada nem ninguém que eu conhecesse, continuei meu caminho. Foi quando ele disse:

-“Ei, você, psiu!”

Agradecendo por estar usando meu pára-brisa preto, óculos que consegue deixar meu olhar indecifrável, firmei as vistas na figura que estava poucos metros a minha frente e dei uma varredura na sua estampa. Nada mau, foi o pensamento da imagem digitalizada. Porém, policiada de qualquer esboço, segui meu caminho para o trabalho, afinal, pensei, não deve ser comigo.

-“Psiu, moça. Ei você: bom dia!” - persistiu no chamado.

“Moça? Psiu? Ele tá mexendo comigo! Eu quis fugir, dar meia volta, mudar de passeio, mas ia dar bandeira demais. Então, apertei a passada, fiz cara de que nem via, nem escutava, protegida pelos óculos escuros. Mas cuidei de mim, quando, abaixando a cabeça, evitei tropeçar no ar, coisa que poderia deflagrar meu jeito menina de ser.

Estou fora do padrão global. Pneus, dobrinhas e dona de outros tantos atributos que, em nada, me colocam no top das models. Já sou gente grande, pinto os cabelos pra esconder os fios brancos, uso creme anti-rugas pra ganhar tempo e me acostumar com que a vida irá, implacavelmente, fazer com minha aparência.

Enquanto tentava manter passos retos e trançei a bolsa bem na altura do que ele poderia ressaltar assim que eu lhe desse as costas, lembrei-me que tinha ficado atônita, na noite anterior, ao descobrir que a pele das minhas mãos estava murchando. O tempo mostra sua força pelas mãos, foi o que conclui. Chequei a me deportar da terra, quando vi, nos olhos refletidos pelo espelho, a mesma menina, cheia de medo, que um dia teve de sair de casa, porque ia ter um filho sem se casar. Sem enxergar o caminho que pisava, lembrei que quis respostas numa estrada sem volta, num caminho em que a alma evapora, sugada, dia após dia, pelo medo, pela solidão, pela coragem que se tem que ter, pra ser o que nem se sabe que o que virá. Deve ser por isto que a gente acaba murcho, foi o que deduzi.

Mas não deve ser nada, se comparada à hora em que Deus expulsou Adão e Eva do paraíso, apenas um dia após terem sido criados. O temor, a vergonha, a impotência foram os primeiros sentimentos humanos que conheceram e que não souberam explicar, pois não os tinham nomeado. Para sobreviver ao que nada entendiam, se fizeram acolher por vestimentas e assim, se cobriram. Depois veio a fome, o frio, o isolamento. Então se abraçaram. Foi o primeiro abraço do principio da humanidade. Por quê será que Deus, de verdade, expulsou Adão e Eva do paraíso?

Hoje caminho para o envelhecer e não consigo encontrar referências entre eu e a casca que se forma fora de mim. Sei que não há como mudar. Perderei mais a forma física, enrugarei, encolherei, meus cabelos se tornarão mais brancos e ficarei diferente do que fui um dia, mesmo que o meu olhar diga pra mim, que ainda sou uma menina. É certo que terei adquirido conhecimentos e estes, às vezes, pesarão mais que a idade. Do mundo verei coisas que não precisaria ter visto, da vida, momentos que não tivessem existido. Muitos já foram, outros virão. E já começaram, ontem mesmo, quando meu filho, ensaiando os primeiros passos fora de casa, me deu "tiau,mãe". E a minha moça, lá de longe, chora no telefone querendo um colo que não posso dar.

Assim, sozinha, abraçada pela saudade, continuo a estrada. Como Adão e Eva caminho pela vida, para crescer, envelhecer e morrer.

É o processo de decantação. Esta deve ter sido a idéia de Deus. Decantar, para que da vida, reste somente o sopro do existir. Do que fica dentro dos olhos. Esta é a essência que é feita o éden.

- Gostosa! – ele falou.

E eu, com a cara mais lavada do mundo, levantei os óculos e respondi:

- Obrigada, meu bem!

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São assim Os Anjos



Ela estava um caquinho de dar dó. Das últimas semanas, bagagens lhe pesavam os ombros: do dinheiro difícil às presentes grosserias do filho mais velho contrapostas à saudade da doçura da caçula distante. Ainda por cima tinha a febre queimando-a de dentro pra fora. Não é doença, é cansaço de mulher sozinha, pensava. Os cabelos embranqueceram de uma hora pra outra e seu olhar envelhecido e sem brilho tirava-lhe o restante das forças. Tamanha solidão a fez chorar em frente ao espelho.

“-Por quê a gente envelhece?” – lamentou-se.

Mas não se deixaria abater. Primeiro, ainda tinha uma ponta de esperança das coisas melhorarem, depois porque a vida continuava nos filhos crescendo. Por ai, resolveu arrumar a casa pra espantar os maus espíritos, pra se fazer mexer, girar energia, mudar o que estava estagnando, sei lá mais o quê. De certo é que tinha de tirar a urucubaca do corpo.

Se a vida te dá um limão, faz uma limonada, lembrou. E esta manhã merecia uma caipirinha! Ia se dar esta força!


Assim começou a arrumação e caipirinha: espana, varre, joga água, troca móveis de lugar, som nas caixas. Terminou a dose. Encontrou companhia. Lágrimas ajudaram-na lavar o chão. Nas letras das músicas vislumbrou formas de expurgar as dores que ruminavam seu peito.

Depois buscou cerveja. Duas garrafas esvaziadas com calma e vassoura virou microfone e o rodo seu par na contra dança. Almofadas formaram uma platéia ativa. Janelas abertas e o vento a aplaudiu, lambendo seu rosto de carinho. No final da manhã quando a casa já estava um brinco, pôde sentir o contraste da assombração que ela queria limpar. Daí quê, pra descansar a alma, foi à padaria comprar mais cerveja.

E foi! Desfilou de chinelo, bermuda, suor e rabo de cavalo, até a esquina. Azar de quem achasse de mais ou de menos. Problema dos bobos da oficina da frente e suas piadas indecentes.

De posse das garrafas, já ensaiava a volta quando viu o filho abrutalhado entrar na casa recém arrumada.
E mais essa agora, pensou sentida, não ia mais poder ligar o som. Diante disto resolver tomar ali mesmo, quantas cervejas fossem pra lhe trazer o sono... E é ai que começa a história que vou contar.

Foi na metade da primeira cerveja que deu de cara com ele. O susto fez com que suas mãos se tocassem de um jeito diferente, as lembranças de um tempo feliz permitissem um abraço sem pudor, sem a preocupação com gente ao lado. E quando se sentaram à mesinha da padaria ficaram por um bom tempo calados. Estavam emocionados na presença um do outro. Então, só se olharam, só se tocaram. Falar o quê?

Ele mais grisalho, engordado um pouco, mantinha o mesmo sorriso escondido na cara fechada. Ela lembrou que ele era um homem bom, cheio de gestos ternos e cautelosos e que se não estavam juntos foi por imposição dela. Quem mandou um ser preto o outro branco, um magro outro gordo, um do mato outro da cidade, um graduado e o outro nem terminado a quarta série? Como leva-lo para um mundo de etiquetas, doutores, regras e tecnologias? Como levar ela para um mundo sem computador, sem os filhos que agora começavam a pegar rumo na vida?

Lembrou-se que a ciência destes fatos eram dos dois. Duas pessoas em mundos tão opostos que um dia viveram momentos intensos, felizes, mas insuficientes para prosseguirem. Na época que se conheceram resolveram seguir assim mesmo. Que fossem até a onde dessem conta. Até que as diferenças pesassem.

Ele, que se dizia forte, chorou no dia que ela pediu pra acabar. Estava preparado para largar tudo e levar ela pro mato mais ele. Azar das querelas. Mas ela não tinha conseguido desabrigar-se das diferenças. Assim, ele foi embora cabisbaixo, jurando nunca mais pisar os pés ali.

- Perdoa eu, nunca te quis mal - conseguiu falar.
- Não tem o quê... você é um homem bom, mas não vê que este mundo não é nosso?

Ela se sentiu acalentada com a presença dele e esqueceu o que vinha vivendo. Pra ajudar, a chuva de verão desceu, resguardando aquele momento e eles se amoitaram em um barzinho de quinta, rindo e jogando sinuca. Nesta hora, nesta tarde, o rompimento estava esquecido. Mais forte que isto tinha a saudade pra ser abatida.

- O que deu em você pra aparecer assim, de repente? - ela perguntou.
- Vim te trazer o dinheiro.
- Quê dinheiro?
- Lembra que você pagou a conta do restaurante, naquela tarde?
- Mas seu dinheiro tinha acabado!
- Eu não podia ficar te devendo.- acrescentou ele esticando a mão com o dinheiro entre os dedos.

O fim de semana ficou comprido. Ninguém soube, ninguém viu. Sábado à noite foram dançar. Domingo ela deixou o filho, ainda emburrado, em casa e foi pra beira do rio mais ele.

Acolhida nos seus braços ela achava que podia respirar aliviada das suas dores. Mas com a chegada da noite a febre voltou.
- Não posso deixar ocê voltar pra casa assim - insistiu ele
- Meu filho está lá, não ficarei sozinha.
- Mas ele não vai cuidar d´ocê, eu vou.

E arrumou um quarto em uma pensão qualquer. Lá se enrolou em um cobertor com ela, zelando sua respiração, respondendo ao delírio dela:
- Você fez nossa casinha branca, meu bem?
- Bem no pé da serra - sussurou pra ela.

Já era noite alta quando ela voltou a si. Ficaram conversando amenidades até o dia amanhecer pra só depois se separarem. Ela retornou pra o seu mundo e ele pro dele. Descobriram que outra forma de fazer amor era sendo o amor. Estavam em paz. Como os anjos.

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Ilusão Serenada


No encontro de sábado, desde as 10 da manhã estavam Zezim Tulipa, Meia Noite, Pedro Melão e Tom. Sentaram no boteco da esquina que é bem buteco mesmo, daqueles que mantém óleo grudado na panela desde a primeira fritura, sabe-se lá quantos anos daqui pra traz. Pra proteger quem ali entra e sai, lá dentro impera a imagem de São Jorge dependurada bem no meio da parede. Ao lado, um cartaz grudado pelo tempo, carrega nas letras vermelhas a mensagem:


"A REALIDADE É UMA ILUSÃO QUE
OCORRE DEVIDO A FALTA DE ÁLCOOL."


Este é o Bar do Salineiro, de certo que um pouco empoeirado, mas é o que tem a cerveja mais gelada, a pinga mais irresistível, os melhores casos e os maiores amigos.


Foi isto que Orlindo pensou, quando lá da ponta da rua viu o quarteto em gargalhadas de pinga e cerveja na mão. Bem mais cedo tinha assumido o compromisso com a patroa “Vô só comprá carne. Volto antes do meio dia” e aquela altura da manhã já pedalava no meio do caminho com a carne de sol serenada pela lua cheia bem presa na traseira da bicicleta. Mas a visão dos amigos ali no Bar do Salineiro o fez pensar em dar uma paradinha pra tomar só uma e trocar umas poucas palavras com os amigos. Célia espera, e ele ainda tava dentro do horário. Podia parar.

Parou.

O que não era de plano acabou por sentar-se na cadeira pra escutar as últimas do político ladrão, de como foi de verdade que Maria de Berto, pegô ele, Berto, mais a outra, lá no barracão. Depois daquele jogo ruim que deixou o trio com gosto de poeira na boca. Sim foi o trio, porque Tom, esse era traíra, tinha ficado do lado de lá, e ainda por cima marcou aquele único gol. Ladrão, o juiz era sim, ladrão. Deu pênalti pra proteger Tom, o Cunhado, pois todo mundo ali na mesa sabia que Tom tava de caso com a gostosa da Tereza, irmã do Juiz ladrão. Tereza, a Tetê. Nossa, que bundão! E a boca? Mulher é cega mesmo, viu o quê no Tom?

Quem bebe e não come, assusta até lobisomem”, interrompeu Meia Noite o tema do momento.
Jesus, Maria e José , lembrou Orlindo segurando o pensamento com as duas mãos arregaladas no topo da cabeça, “a carne de Célia!”.

Os amigos o acalmaram. “Mulher, num se pode dar mole não, senão acostuma e daí o homem paga todos os pecados. Mulher tem que ser ali, no pulso. Se tomar as rédeas, oh, acabou! E tinha mais, a filha do Veio Tomás tinha fugido com outra mulher! Nossa, o mundo ta perdido! Será que é verdade mesmo? Como pudia, uma mulher linda daquela! Mas o irmão, dizem, também é viado. A família ta condenada, desde que o avô quebrou!

E como a água sempre descobre um meio, a promessa da última, a saideira, o só mais esta, entreteu Orlindo que aceitou só pra provar, um tiquinho assim, do tira-gosto da carne de sol serenada, feita pelo próprio Salineiro. “Mas não é melhor que aquela que tá ali” disse apontando com os beiços a outra, agasalhada e bem presa na traseira da bicicleta. Depois contou uma história cumprida de como tinha feito pra sair de Buritizeiro e ir pedalando até Pirapora só pra buscar a carne e agradar Célia. Fazia tudo por aquela mulher. Mas, um dia traria uma manta de uns 2 kilos pros amigos, pra comer ali no bar. Eles iam ver a diferença. Não que a do Salineiro fosse de toda ruim, disse mastigando, mas a de Pirapora, hum, tem um segredo. Quem sabe, não descobriam?

O riso já ia solto, a saideira virado caixa e o dia dava sinais de se recolher. Pingas? Sei quantas foram não.

Orlindo apertou as mãos dos amigos. A tarde boa tinha virado “boa noite”, e pensando em Célia, na promessa de amanhã fazer uma farra sozinho mais ela, pegou rumo. Ia ser melhor assim. Com a cabeça cheia de idéias, sorriu, e a serenada da garupa, ganhou um olhar cheio de planos.

Eu o acompanhei, zique-zaqueando rua afora, até sumir. Feliz ele por não saber que a serenada era a ilusão carregada, porque fora a dele, ou melhor, a de Célia, a carne servida na mesa do buteco, bem pouco tempo atrás. Besta ele, achar que o quentim que forrou sua barriga, que os fiapos que tirou no palito, eram do tira gosto de Salineiro... Porquê no meio da risaiada, Zezim Tulipa, tirou a carne que era pra Célia e deu pra Salineiro fritar. E no bagageiro da bicicleta, o mesmo papel cinza, o mesmo cordão, enlaçou nada mais nada menos que um pedaço de tijolo bem ajeitado.

E lá se foi Orlindo pedalando mansamente, de um lado pro outro da rua, com mil sonhos e dois planos pra na hora que encontrar com Célia.

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O fim do Mundo


Lembro-me bem daqueles dias em que Buritizeiro ainda era novidade pra alguém como eu, recém chegada da cidade grande. Era também tempo de virada de século, bem na estréia do ano dois mil.

Naquele início de noite eu passeava pelas ruas, buscando seus moradores e aprendendo, encantada, às novidades que me eram proporcionadas pelos costumes da recém apresentada cidade. Minha mente fervilhava conhecendo pessoas de jeito desconfiado, olhar de soslaio, gente que vigia, enquanto conversa e, quando fala, a fala é mansa, cantada e sem pressa. As histórias já mexiam com minha imaginação, quando na porta de Neguim, a apresentação foi bruscamente interrompida pelos gritos:

- Jesus voltou! Jesus voltou! – berrou a voz na rua. E pelo tamanho do pulo no banco, ficou claro a seriedade do caso, com o susto da minha anfitriã - Gente, quequiéisso?

- Vem ! É o fim do mundo que chegô! – repetiu a voz ao apontar com o queixo, o decreto estampado bem na cara de toda gente.

Era um círculo. Uma bola gigantesca formatada com um furo bem no meio, brilhando feito prata lustrada. E pra completar a aparição, crescia e diminuía em forma ritmada, abrindo e fechando uma clareira na abóbada celeste! Um ohh, com a mão travando o grito na boca tomou conta de toda a gente. Dali em diante, fez-se o caos na cidade.

Homens acolhendo suas mulheres, crianças agasalhadas aos braços dos pais, gente de todas as idades cortando as ruas, num vai e vem frenético, deixando, no rastro, gritos de pavor! Era de arrepiar! E que ninguém duvide, porque era só virar osoi pra riba e confirmar: lá estava os sinais do fim do mundo, na cara do céu!

Na época, a televisão vinha alardeando, estampado em suas manchetes, com avais de Nostradamus e até de Mãe Diná, o prenúncio de que aquele ano seria sim, o adeus geral. “Mil verás, dois mil não passarás”, relembrava outra voz ao se benzer.

- Oh minha filha, Jesus precisa me perdoar. Pelo amor de Deus, leve eu pra casa. Preciso ver meus fio! Tenho quê pedi perdão - chorava a senhora,bem branquinha, que veio agarrar-se a mim.

Acomodada a mulher no carro, volante firme na mão pra contornar o povo boquiaberto no meio da rua, cara-a-cara com a aberração, lá fui eu, satisfazer o último desejo da dona. Não sei se o que me deixou estremecida foi o desespero do povo, se os gritos da mulher ou mesmo o branco engolindo o céu. O certo é que me fiz parte da multidão ensandecida.

Mãos tremendo ofertaram-lhe água com açúcar, assim que desceu do carro. O filho, aturdido, preferiu sentar-se silencioso à porta da casa e deixar perder o olhão triste no fim anunciado no céu. Ficou ali estagnado, suas pernas lhe avisaram, não adianta correr, a morte alcança de qualquer jeito. Ia dar uma de besta nada!... A menina, coitada, que na realidade era uma mulher de peitos fartos e mãe de cinco rebentos, fungava o nariz na palma da mão, assim, meio que embebedada, olhos pregados na velha mãe, querendo decorar em meio a tantas lágrimas, as rugas da sua progenitora. E foi bem assim que a velha, agarrada aos filhos e netos, descascou seu segredo. E eu, diante da cena dos abraçados, falando baixo feito reza, deixei a família trocando suas confissões. Voltei pra rua.

No carro sintonizei o rádio pra escutar qualquer tipo de elucidação para o caos que se formara na cidade. E como o ritmo Dance corria solto, sem interrupção do locutor, julguei, inicialmente, ter sido aquela escolha na despedida musical. Fugiram, deixaram qualquer coisa tocando, pensei. Cheguei visualizar a rádio abandonada, e sim, achei de mal gosto morrer assim, americanizada.

Enquanto ruminava sobre o estilo musical, fixei o olhar no céu. Na soma do dois mais dois observei que a bola acompanhava o ritmo vindo do som da música no rádio. Ainda buscando ligar uma coisa com a outra segui pra beira do rio São Francisco e a resposta, como um quebra cabeça, veio clarear o tamanho do Deus-nos-acuda.

Do outro lado do rio, cerca de 700 metros à minha frente, em festa, estava Pirapora. Do alto, do lado de Buritizeiro, onde eu estava, pude ver uma barraca toda branca, enorme, imponente e majestosa, armada bem na praia do Velho Chico. 


A boate itinerante, pra gritar sua estadia e atrair sua gente, riscava o céu com um canhão a laser. Era este o fim do mundo que dançava no céu.

Mais tarde vim a saber, que gente de todo jeito e tamanho, tanto de Pirapora quanto Buritizeiro, afiançou aquela coroação celeste como o fim dos tempos. E eu aqui, ré confessa, dou minha mão a palmatória: deixei-me levar pela aparição. Também, qualquer um ficava assim, se tivesse embreada, como eu, no meio da confusão e gritaria. E também, como todo mundo, não achei nenhuma graça quando a ficha caiu.

Hoje, mico bem pago, fico a rir de mim e de todos os pecadores que não consentiram que raciocínio imperasse. Porém, tanto aqui, quanto em Pirapora, quem não acha graça desta história é aquele que não se pode nem tocar no assunto. Talvez por ter dito muitos dos segredos e, por isto, arrepende-se. Mas, os poucos que dele falam e dão risadas, ficam a relembrar de fulano e cicrano e as mais variadas formas com que cada um encontrou pra viver o fim do mundo.

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O Rato e o Amor do Rato


Foto do meu quintal, tirada por mim às 5 da tarde.




O quintal da minha casa dá vistas para um quadro. Bem do alto da varanda, consigo ver, lá no fundo, carros que cruzam o asfalto da BR 365 ligando Montes Claros a Brasília. Se sentada na mesinha da cozinha, contemplo a pintura perfeita que, magistralmente, embaralha todos os tons de verde nas árvores, arbustos, capim e os pés de fruta que brincam com vento sob as bençãos de um céu infinitamente azul. Visualizou? O quintal da minha casa é uma fazenda.

Daí que não é nada incomum que micos, pássaros, cobra-cipó, sapos, aranhas, ratos, saruês e outros bichos venham, volta e meia, fazer uma sondagem, buscar comida ou mesmo abrigo na minha casa. Uns morrem no chinelo, outros espanto com a vassoura, outros, mantida uma certa distancia, espero a hora de convida-los a se retirarem, como numa madrugada em que um saruê resolveu dormir perto de mim, dentro do meu guarda-roupa, na maior folga do mundo.

No caso do saruê esperei o dia amanhecer e pedi ajuda aos vizinhos para providenciarem a sua retirada. Manhã movimentada, muitos gritos de “mata mata, ele come galinha” facilmente derrubados com a minha argumentação óbvia: “deixa ele vivo, a gente também come galinha. E ademais, a única plumada que tem aqui sou eu e a mim ele não fez nada”. Contexto acatado, ânimos acalmados e o bicho foi embora, ileso, com direito a uma espreguiçadela bem na porta de saída. Provavelmente aquela não fora a primeira noite. Sua atitude mostrou que me conhecia muito mais que eu a ele. Sabia que sou de paz e o defenderia. Estava numa boa.

Mas espera ai, eu disse ele o saruê, não os ratos.

Ah, eu detesto rato. Até já matei um e admito, no medo. A aversão é tanta que, se na madrugada, eu precisar levantar para um simples copo de água e suspeitar que existe um na minha cozinha, morro de sede, mas não enfrento o bicho. Além do medo, a birra também é grande, e até faço campanha contra eles. Já distribui gratuitamente veneno contra rato para meus vizinhos humanos, montei pequenas cartilhas falando o mal que ele faz e ainda protagonizo escândalos quando dou de cara com um. Estou sempre em busca de venenos aniquiladores e aberta a novas propostas de extermínio para este dito-cujo.

Mas eis que o melhor desta batalha aconteceu quando, foliando o catalogo de um vendedor deparei-me com uma peçonha digna de um grande algoz. O tal anuncio mostrava um veneno que tinha como atrativo, não o cheiro de queijo ou outra comida. Melhor que isto, ele cheirava a sexo. Explico: o veneno era um afrodisíaco capaz de enlouquecer machos e fêmeas para o amor.

Noite estampada no céu, arma inusitada na mão, mal me continha para testar a eficácia do produto. E assim foi.
Colocado em pontos estratégicos o(a) rato(a) deve ter ficado tão enlouquecido(a) que trocou a rodelinha de lugar várias vezes. Provavelmente, enamorado(a), deu-lhe pequenas mordidelas e por isto a arrastou para cantos libidinosos. Deve ter brincado, abraçado, jurando estar amando e sendo amado. Foi, voltou, se esfregou, amassou, num silêncio que eu arriscaria dizer, amoroso.

Enquanto se esbaldava e se deliciava, entorpecido na dedicação, engoliu pedaços da sua nova paixão. O tóxico então, caiu na corrente sangüínea e como num amor louco, parou seu coração e ele morreu embriagado de paixão e tesão. Quando pela manhã encontrei o bicho morto ao lado do seu amor-veneno fiquei pensando que ele ou ela morreu feliz. Posso jurar mais? O bicho sorria!

Na loja, quando me pedem um “remédio pra rato” e conto a história do falecimento lá em casa, encontro nos meus clientes o mesmo sorriso macabro que o meu. Todo mundo gosta de ver o circo pegando fogo, ainda mais se tiver um rato dentro. E cientificamente falando, - já que cientistas usam ratos para testar a reação humana – a experiência comprova a citação: “cupido é só libido; o resto é literatura”.

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TRAVESSIA



Pra ir trabalhar, atravesso a ponte Marechal Hermes que liga Buritizeiro a Pirapora, todos os dias. E hoje ela estava congestionada. O rio, lindo, impávido colosso, brilhava sob muitos pés. No céu, tem o sol dourando a pele da gente. E a pele não arde, porque tem o vento lambendo a manhã e os corpos. E os “bom dia”, os “oooi”, os deliciosos “eeei menina!” é a parte musical.

Quando comecei a travessia, pensei em Chico que ontem me disse estar triste, em Tião abrindo sua caixa postal e dando de cara com um monte de gente e Isabela, lá em Paris sentindo-se meia Baronesa de Münchausen. Será que topariam atravessar para o outro lado de bicicleta, como eu?

É porque passar na ponte de bicicleta não é coisa pra qualquer um. Pra poder seguir em frente, tem que ter força nos braços, nas pernas e já se integrar às tábuas balançando e ao rio descendo. Senão não dá conta. A pé também é difícil. Veja só, o turista. Diga-se de passagem, que é só bater o olho, pra saber quando é “gente de fora”. Primeiro, porque ele se veste de férias com a máquina fotográfica no pescoço. Segundo, ele entra na ponte achando que vai atravessar os 694 metros de tábua meia solta, meia presa, como quem anda na rua. E não vai. Metade do caminho, lá está um sujeito, mais desbotado do que é, vestindo tênis e meia três - quarto, agarrado ao beiral de ferro, sem saber se vai ou se fica. Ele está tonto. O que antes era aventura, naquela altura do campeonato, vira superação.

Ah, mas esta palavra é lá pros lados de lá, pelas bandas de Tião! Vejo-o diante da sua caixa de mensagens, costurando a colcha da rede mundial, com histórias de gente de todo jeito. Deve ter gente ferida, gente alegre, gente que quer ferir só porque não é alegre. E depois disto tudo, ver-se a si próprio. Dia após dia. É a tal superação.

Mas quem tinha de ir além de si mesmo, era Chico. Devia estar aqui pra ver Fiote cantar “Bom Dia geeennnte!” pra todo mundo na ponte. Ele ia esquecer seus problemas, ao ver aquele menino grande, quase da sua idade, mas que a deficiência não deixou crescer, fazendo a travessia, de lado, pernada a pernada, saltitando atrás da mãe. Com os olhos tão azuis quanto o céu, Fiote segue uma senhora de longos cabelos presos em rabo de cavalo. Ela vai séria, reta, nem olha pras tábuas, nem pra trás, nem pro rio, nem vê o povo, enquanto ele, distribui “cocão” na cabeça dos pescadores e repetindo, na voz embolada, o sorriso do “Bom Dia geeennnte!”.

O pescador que apela e jura que um dia vai revidar o toc-toc na muleira, busca o Dourado. E lá está Isabela na terra de ceux aimants, assustada pelo poder que os bichos lá ganharam. Bicho que o povo agora se enamora, porque nem no anzol, ninguém pega mais ninguém. Mas eu queria que ela estivesse aqui para poder ver, o que eu vi, nos olhos de um homem bacana, no domingo, diante do bailar verde do meu quintal, a frase que as estatísticas de Paris deixaram de fora. Com a voz firme, o pedido de olha no meu olho, seguros na minha mão, perguntou-me se eu gostaria de ser a sua namorada. Se eterna, só o tempo. De perene, o homem que acredita que o amor ainda tem sua razão de existir mesmo depois que a gente cresce.

Penso de novo que Paris é bonito, que Tião tá costurando muito, que Chico devia viajar e que Isabela podia acreditar no amor. O celular apita a mensagem, é dele: “Tenha um bom dia, meu bem!”

Queria que estivessem aqui, sobre a Ponte São Marechal Hermes
.

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