Os Três Tempos
A areia quente sob os pés, a mente fervilhando perguntas, coração batendo forte no peito. Não sabia dizer o que sentia. Se raiva, se amor, se rancor. Muita coisa dentro. Excesso de tudo. Mistura de só e junto. Verdadeiramente misturado, pensou. A noite passada em claro, o corpo abrasado ao lado do travesseiro vazio. Por isto saiu de casa quando o dia ainda abria os olhos. Precisava trocar passos com a realidade, não se precipitar no compasso e assim, deixar o novo tempo nascer.
Como num parto, a contração do pensamento embaralhado fez com que ficasse tonta de desgosto. Esmurrou o ar. Quis soltar no grito, mas as mãos carregadas do vazio prenderam a boca.
Mergulhou de ponta no rio.
Afundou de cabeça na água e lá, imersa, se embaralhou no turbilhão da sua correnteza. Quem de nós dois vai explicar isto? Nas veias, o sangue gelado, no peito palavras escritas nas conversas. De si, a mente que teimava e relia sem parar o que não era pra ser visto. Ecos pra todo lado. As palavras no bate-volta.
Caraca! Queria se livrar do incomodo, mas pra isto tem que entender ou aceitar. Devia mostrar pra ele. Mas, falar por falar é conversa jogada fora. Não quero ser convencida de nada. Tem evidências demais. Quer afogar o martelar na cabeça e por isto fica debaixo d’água até não ter mais ar. E quando emergiu, ele estava lá, sentado na areia.
- Se demorasse mais um segundo eu ia te puxar pelos cabelos – foi o que disse quando se sentaram na praia.
Quem diria que o mesmo homem que anos atrás formou família e disseram “sim” diante de uma igreja cheia de convidados, hoje, a protege de uma outra história. São amigos ligados por um presente em que não tem dúvidas; apenas começo, meio e fim de um casamento que não deu certo. Foram cada qual passar noutra estrada, mas resguardaram a base com que se fizeram pessoas. Sentados diante das corredeiras do rio, ele nada perguntou e ela nada disse, porém deixou que ele soubesse por quem era o seu descontentamento.
- Perder é, as vezes, ganhar, sabia? Deixa como está, segue seu caminho.
Não existe esta coisa de perder ou ganhar, isto não é um jogo , tentou explicar mostrando o avesso das coisas, a frase na contramão. Não queria desculpas pra ver o que tava na cara e por isto contou a história toda, tim-tim-por-tim-tim sem refletir uma visão pessoal de dona da verdade.
A história começou quando o causador do descontentamento chegou dizendo que estava ali pela metade. E como os gestos falam mais que as palavras, no correr dos dias, mostrou que nem o restante da outra metade se fazia presente. Criticou a cidade que antes era surreal e intrigante, reclamou e encheu de defeitos o que antes era perfeito. O material de trabalho entregue a ele mal foi desvendado. Ficou ali na caixeta a disposição do olhar preso em outro mundo. Um dia falou que tinha medo de não dar conta e ela não quis convencê-lo de que a capacidade esta na vontade. Ela quer mudar, ta de saída, mas ele se diz bagagem e não pessoa. E pelo que sabia, no que guardou pra ele, o que desvendou pra ele, o que entregou pra ele foi estilhaçado no ar, nas palavras gravadas na tela. Eu não me importo com que os outros digam, mas me importo com o que ele diz pra os outros, finalizou. E o que ela ouviu, leu e escutou foi o que fez com seu coração perdesse a cadência.
- Perdoa os enganos, festeja o novo tempo, disse o então amigo na despedida.
Ela, assim, aceita que em histórias de amor não há culpados, nem pecadores. Há o tempo certo de cada um. Agora guarda em uma caixinha as fotos, as histórias, os apontamentos. Retira, delicadamente do computador, as lembranças. Pensa no que foi bom e se abastece disto. Suga do ar as delícias que um dia viveram e manda pra ele, seu melhor beijo diante de uma estonteante lua redonda no céu. Depois, quase que em oração, balbucia palavras ao homem formidável que amou e deseja verdadeiramente que viva em paz. Sabe que não existirá remédios pra nostalgia que virá, e por não querer esperar sentada, aceita o convite engavetado para ir dançar.
- A noite é uma criança – brinca com o novo tempo que nasce. Depois se surpreende às gargalhadas ao descobrir que o homem que a conduz no dois pra lá, dois pra cá tem o mesmo nome e sobrenome do que acabou de partir. Vida atrevida! Agora faz piada com a minha cara!
E com os olhos cerrados diante do novo tempo, se deixa apertar pela cintura, com a certeza de ter transformado o que pareceu tempo perdido, no mais sublime de si, ao se ver por inteira, como a mulher que vive, viveu e viverá um grande amor.
Quando não vai dar certo o melhor é parar antes que fique pior. Saber virar a pagina da historia e aproveitar os passos da dança já é um perfeito recomeço de viver.
ResponderExcluirKitty,
ResponderExcluirVou seguir o velho conselho de um retardado do diHiTT: não vou falar difícil dessa vez. Tempo é tempo, e não dá de entender o Tempo de Cada Um, pq ainda q os corações caminhem juntos, cada um deles é único e vibra numa frequência também única.
Mas que nunca se perca de vista o que o Tempo de cada um trouxe de flores, aromas, dias novos e noites estreladas. Perder isso é perder de vista todo o caminho percorrido. É estar, verdadeiramente, perdido!!
Não tenho mais o que falar...falar o que??
Bjs
Ebrael.
Olá minha querida e amada Valéria,
ResponderExcluirTeu conto é maravilhoso, inteligente, inebriante e difícil de desvendar as palavras ditas nas entre linhas. Adoro ler o que escreves e me emociono a cada conto.
Cada conto que contas me encantas com teu grafar
Teu pensamento embaralhado me tonteia de pensar
Sempre vem a dúvida será que é real ou figurado
Falas de quem, do outrora afastado ou do atual amado
Que gastura essa incerteza de saber o que acontece
Não perceber o intuito das palavras me endoidece
Vem a tristeza ao pensar que a felicidade
Foi-se embora e a então reinante serenidade
Transmudou-se em turbilhão de incertezas
E tua alma ferida num ato de nobreza
Apenas dizes adeus ao grande amor de tua vida.
Minha linda, espero que esteja tudo bem contigo.
Deus te ilumine para trilhares um caminho feliz
Carinhoso e fraterno abraço,
Vovó Lili
Olá Valeria ,
ResponderExcluirGostei sim ,e muito.
Deixar ir embora faz parte da existência, não é ?
O fim é sempre o começo de uma outra história. Ter isso claro traz uma compreensão diferente e mais leve do que está por vir.
bjo
Eninha
A profundidade das palavras sutilmente vem expressar o que há de mais íntimo e sincero... Pode ser clichê mas sim, Val, adorei. Fez-me recordar um texto Paulo Mendes Campos,o qual lhe transcrevo. Beijos e até mais.
ResponderExcluir"O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba".
Querida Valéria!
ResponderExcluirMe emociono novamente. E penso que Lilian tem razão, pois sinto bem semelhantemente a ela,sem saber o que é real, o que é só o conto,mas torcendo por você. E, com o agravante de que às vezes, quase me afogo no teu rio, porque vou com a personagem e não sei nadar!
Contudo, uma certeza tenho por enquanto e a descobri recentemente: O meu coração de mulher, sem idade,maldade ou descrença, ama aquele homem que era, e o que viria, se tivesse chegado de fato e ama porque só assim, consegue viver !
Valéria,
ResponderExcluirVocê conseguiu narrar a história com muita pompa e maestria, e isso é peculiar somente às pessoas que sabem amar, mas, ao mesmo tempo, sabem renunciar por amor.
Os amores de outrora, muitas vezes, podem ser os nossos melhores amigos, e posso dizer isso com consciência de causa...
Ele estava certo ao dizer que perder, muitas vezes, é saber ganhar.
Você ganhou a experiência de bons momentos vividos, e momentos bons são inesquecíveis, que guardamos nas nossas lembranças.
Nem tudo que achamos ser o melhor para as nossas vidas, é o melhor mesmo, pois a vida sempre nos reserva algo de muito melhor do que aquilo que pensávamos ser o melhor, e devemos nos lembrar sempre que tudo aquilo que nos parece ser mal, é sinal de um grande bem que está por vir.
Espero que o seu coração fique em paz, e com muita serenidade, pois é isso que você merece, e seja muito feliz nos dias que estão por vir.
Aproveite muito para dançar, e acredite que não existem coincidências, e nada em nossa vida é por acaso, pois tem tem uma razão de ser, até mesmo nomes iguais, em estações diferentes, sempre significam algo que não compreendemos de momento, mas, que um dia, iremos saber seu real significado.
Adorei!
Bjs.
Ro.
Parabéns pelo belíssimo post. Como já dizia Neruda:
ResponderExcluir"Morre lentamente quem não viaja, quem não lê,
quem não ouve música,
quem não encontra graça em si mesmo.
Morre lentamente quem destrói o seu amor-próprio,
quem não se deixa ajudar.
Morre lentamente quem se transforma em escravo do hábito,
repetindo todos os dias os mesmos trajetos,
quem não muda de marca, não se arrisca a vestir uma nova cor
ou não conversa com quem não conhece.
Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru.
Morre lentamente quem evita uma paixão,
quem prefere o negro sobre o branco
e os pontos sobre os "is" em detrimento de um redemoinho de emoções
justamente as que resgatam o brilho dos olhos,
sorrisos dos bocejos, corações aos tropeços e sentimentos.
Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz,
quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho,
quem não se permite pelo menos uma vez na vida fugir dos conselhos sensatos.
Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da sua má sorte ou da chuva incessante.
Morre lentamente quem abandona um projeto antes de iniciá-lo,
não pergunta sobre um assunto que desconhece
ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe.
Morre lentamente...
(Pablo Neruda)"
Eu completaria dizendo que morre lentamente quem nunca abriu o coração para um novo amor mesmo sabendo dos riscos envolvidos.
BEijos no coração
Márcia Canêdo
Saudações!
ResponderExcluirAmiga VALÉRIA, é impressionante a facilidade que você tem para narrar às minúcias de relacionamentos que confesso, não tenho esta capacidade. O conto ficou hiper sublime, mágico e incrivelmente impecável repleto de registro que somente os bons autores conseguem escrever.
Parabenizo-a fervorosamente pelo brilhantismo de sem igual... Um dos melhores textos que li ultimamente aqui na rede diHIT!
Parabéns pelo magnífico Post!
Abraços,
LISON.
Menina, quem é vc? Que talento!!!
ResponderExcluirLi não esta, mas outras crôncias e contos que escreveu. Estou encantado!
Posso falar com vc no msn?
Confira esta matéria:
http://www.agenciasebrae.com.br/noticia.kmf?canal=40&cod=4791129&indice=0
Nossa, Valéria, que viagem! percebi agora, em cada parágrafo, linha, palavra sua, e em cada verbo seu, um capítulo latente e pulsante, inteiro que diz: Oi,meu nome é "entrelinhas"... fecho tudo aos abertos de coração e enigmátizo simplicidade aos fechados abertos... Que é iççu? Nada mais que uma grande história, uma vida, que quando contada assim em minutos, como o foi agora,tem o poder de transformar cada segundo em em um ano... Para os que sabem ler, claro.
ResponderExcluirSaudades de ti, que eu mal,bem conheço.
Te adoro. bj...