O coveiro, o rio e eu




Depois de duas mortes, ainda mais daquele vulto, há toda uma reconstrução a ser feita. E não se volta pra estrada do mesmo jeito que se foi. Com a batida, nossos pedaços caem tão longe e se espatifam em bocadinhos tão miúdos, que fica difícil reintegrá-los na sua forma original. A palavra “nunca” toma forma de realidade e vai para onde os sonhos morrem. Assim, desse jeito assim, fechei a casa, as minhas portas e janelas e lá me consenti por tempo indeterminado. Perdi o tempo...

Alguém bateu no portão. Uma, duas, três vezes. E no dia seguinte no mesmo tom. Fui espreitar: era o coveiro.

O intitulado enterrador de corpos da cidade é um velho subordinado da profissão. No dia do sepultamento da minha mãe foi protagonizador de uma cena bizarra quando, escorado sobre o caixão, parou o trabalho e debulhou: ganhava pouco, o prefeito era do mal, trabalhava sem condições e a família? Tudo na maior miséria! Depois, de dentro do túmulo, resguardado por estátua de um anjo de bronze, gritou:
Tem uns ossinho aqui! Cês quê vê?” e saiu de lá com um pedaço de pano na mão: "Era da vó docês?" No final apontou: “botei tudo naquela quina ali, oh!”. O conversê só parou quando, convocado no ouvido, levou umas notas de real pro bolso. Mas, queria mais.

- Tá cheio de mato lá – disse chupando o dente – mas arranquei tudinho.
- O senhor quer mais dinheiro, moço?
- Esse é outro serviço, dona. Agora vale 30 real. E mais 10 por mês pra eu molhar lá todo dia.
- O prefeito falou que não devo te dar dinheiro não – menti ao dar-lhe as costas.


Mas foi só entrar, que a raiva veio de cheio. Rodopiando pelos cômodos da casa,entrei e sai de tudo quanto é canto. Já não cabia nem dentro do quarto! Sujeitinho besta, achando que é dono! E no meio deste pensativo ruminante, decidi que a partir dali, seria eu a zeladora do túmulo da minha mãe. Portanto, era clarear o dia que - de regador verde, boné e óculos escuros - lá estava eu, a caminho do cemitério.

O Jardim da Saudade fica à poucas quadras da minha casa. Escolhi fazer o trajeto a pé,pra tomar ar, pegar o fôlego adormecido. Mesmo indo silenciosa, sem nem olhar pros lados, com o tempo ficou difícil não reparar nos olhares intrigados, nos cutucões nas esquinas, nas perguntas de curiosidade: “Uai, cê fez horta?” Mas valia a pena. Lá, em meio às lembranças, extorqui a minha saudade de outras formas. Eu não sabia, mas ali começava a dar os primeiros passos pra fora da hibernação.

Por outro lado destas minhas idas e vindas, tinha o coveiro que não esperava que eu fosse reagir assim. Primeiro, deu pra ficar me observando por traz dos outros túmulos. Depois, a chegar antes de mim e a ocupar as torneiras onde eu enchia o regador de água. Passei a dizer Bom Dia! e ele resmungava qualquer coisa. Voltei a usar fones com as melhores sonoridades musicais. E ele interpelava o caminho. Desviei-me da sua sombra, quando ele se aquietou na butuca.

E eu era implacável. Não faltava nem no domingo. Descobri que cemitério não dá medo e até passei a cumprimentar os mortos, assim que chegava. Às vezes cantarolava e ensaiava uns passinhos de dança, entre um túmulo e outro. Cheguei a pensar na possibilidade de ficar “amiguinha” do moço, afinal, perdão existe. Sim, podíamos ser amigos e um dia eu ia passar aquela bola pra ele. Mas não esperava pelo que viria a acontecer.

Naquela manhã eu fui me adiantar. Viajaria no dia seguinte, portanto, tinha que caprichar na aguação. A grama estava quase toda verdinha. As flores, plantadas por mim, nos nove cantos, já estampavam brotos. Sim, eu me sentia feliz ao ver que, efetivamente, ali surgia vida. Porém, naquele dia, algo estava errado: o local fedia... E no fim da viagem, assim que desci do carro, o contra-golpe veio por um terceiro sujeito que destilou sussurrado o ocorrido: o coveiro jogou veneno na sepultura da sua mãe.

Na passada apertada, mesmo trêmula, caminhei até o cemitério. O coveiro estava na porta quando entrei. E lá, bem no cantinho do muro, pude ver o ato devidamente comprovado: os tapetes de grama amarelados e revirados e somente duas das pequenas mini-árvores de flores, inteiramente secas e sem nenhum botão, tudo devidamente pulverizado por veneno pra matar mato! Eu tive medo quando ele olhou pra mim e sorriu.

Diante da imensidão do rio, pela primeira vez, eu chorei de verdade. Queria cair naqueles braços, deixar-me verter na imensidão do azul, das cachoeiras, nas corredeiras. Aquelas águas eram minhas. Todas. Chorei por minha mãe, por meu pai, pelo coveiro e por mim. Mas o rio me disse pra eu não ligar pra aquilo. Mostrou-me as pedras que seguram as águas nas cascatas e logo mandarei colocar ardósia no lugar da grama morta. É só parar de chover. É só eu parar de chorar. Amanhã deve nascer o sol.

Moro no mundo, porém, ele sempre me surpreende.

13 comentários:

  1. Anônimo17:45

    LISON.
    Saudações!
    Amiga,
    Excelente Post!
    Que história interessante, por momentos pensei que o coveiro ia se tornar amigo, engano e o pior, ainda matou a grama. Parabéns ao grande rio que lhe socorreu!
    São as águas bentas na vida, para uma nova vida!

    Parabéns pelo magnífico Post!
    Abraços,
    LISON.

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  2. OLha!!

    Eu a cada dia descobrindo escritores por aquim no Dihitt!!
    Ótima crônica, com um tom emocionado!! Percebi que era real sim, e imagino o qto emoções contraditórias, em situações marcantes, podem resultar na vida de alguém. Pelo menos, das águas azuis e das lembranças de sua mãe querida, nasceu essa pérola-crônica!!

    Bjs Valéria!!

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  3. Ótimo conto que mostra uma realidade dos aproveitadores da vida e da morte para satisfazerem os seus interesses mesquinhos.

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  4. Amiga não conhecia este seu lado inspirador, muito boa crônica e parabéns mais uma escritora para nosso deleite.
    Abraços forte e sucesso.

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  5. Minha querida amiga!
    Não sei se a história é verídica e te digo palavras de consolo, ou é uma crônica, então te felicito.
    Vou optar por te dizer que, verdadeiro ou não, teu texto está muito bem escrito e traduz toda a dor da personagem frente à morte e ao insólito da situação.
    Bjs!

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  6. Anônimo14:49

    Tenebroso o coveiro. Como é possível, deliberadamente, matar as flores e a alegria?
    Abraços
    Luísa

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  7. Olá!

    Excelente estória que, embora um pouco tenebrosa, é cheia de significados. Devemos sempre fazer o máximo para estármos preparados para qualquer ocasiao e todo tipo de desafio. Devemos está preparados para todas as surpresas que possam surgir.

    Abraços

    Francisco Castro

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  8. O que tenho a dizer... Além de impresionante...

    Como dizem: "Não importa sobre o quê você escreve, e sim como escreve."

    Show Val

    Sou seu fã

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  9. Boa narrativa. Obrigado por comentar no meu blog. bjs

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  10. Gostei de seu texto, é bem literário, descreve emoções, situações e lugares de forma poética.

    É uma história triste... Para todos, mas acho que principalmente para o coveiro que não aprendeu a perder.E guarda um coração raivoso e vingativo.

    Espero que o rio tenha lavado a dor.

    Bjão!

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  11. Anônimo06:18

    Seu texto esta MUITOOO bom!
    Ele mexe com todos os sentimentos...
    Começo lendo e pensando: onde isso vai dar?
    Vejo que é um texto triste.
    Consigo dar uma risada no meio.
    Quase no final me choco e fico preocupada com o final.
    No final, de fato, fico triste.
    Essas foram as emoções que senti.
    Está ótimo o texto, como sempre.
    Parabéns novamente!

    beijos
    byy

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  12. Olá querida amiga Valéria,

    Parabéns pela linda crônica que escreveu.

    Encontramos no decorrer de nossas vidas, pessoas como esse coveiro maldoso, mas, apesar da maldade que nos fazem, superamos a tudo com a ajuda de Deus.
    Suas crônicas são verdadeiras obras literárias.
    Carinhoso e fraterno abraço,
    Lilian

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  13. Um demônio cheio de indiscrição e petulância é o que tal sujeito é.E, afirmo ainda:ele enterra a si mesmo. Mas acho que soterrar-se em ódio, não faz diferença pra quem não tem alma; o caso dele, pobre diabo...

    Deixe o rio correr,Valéria,e sempre que puder, chore como o céu chora a chuva;
    é assim que a alma cresce.

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