TRAVESSIA



Pra ir trabalhar, atravesso a ponte Marechal Hermes que liga Buritizeiro a Pirapora, todos os dias. E hoje ela estava congestionada. O rio, lindo, impávido colosso, brilhava sob muitos pés. No céu, tem o sol dourando a pele da gente. E a pele não arde, porque tem o vento lambendo a manhã e os corpos. E os “bom dia”, os “oooi”, os deliciosos “eeei menina!” é a parte musical.

Quando comecei a travessia, pensei em Chico que ontem me disse estar triste, em Tião abrindo sua caixa postal e dando de cara com um monte de gente e Isabela, lá em Paris sentindo-se meia Baronesa de Münchausen. Será que topariam atravessar para o outro lado de bicicleta, como eu?

É porque passar na ponte de bicicleta não é coisa pra qualquer um. Pra poder seguir em frente, tem que ter força nos braços, nas pernas e já se integrar às tábuas balançando e ao rio descendo. Senão não dá conta. A pé também é difícil. Veja só, o turista. Diga-se de passagem, que é só bater o olho, pra saber quando é “gente de fora”. Primeiro, porque ele se veste de férias com a máquina fotográfica no pescoço. Segundo, ele entra na ponte achando que vai atravessar os 694 metros de tábua meia solta, meia presa, como quem anda na rua. E não vai. Metade do caminho, lá está um sujeito, mais desbotado do que é, vestindo tênis e meia três - quarto, agarrado ao beiral de ferro, sem saber se vai ou se fica. Ele está tonto. O que antes era aventura, naquela altura do campeonato, vira superação.

Ah, mas esta palavra é lá pros lados de lá, pelas bandas de Tião! Vejo-o diante da sua caixa de mensagens, costurando a colcha da rede mundial, com histórias de gente de todo jeito. Deve ter gente ferida, gente alegre, gente que quer ferir só porque não é alegre. E depois disto tudo, ver-se a si próprio. Dia após dia. É a tal superação.

Mas quem tinha de ir além de si mesmo, era Chico. Devia estar aqui pra ver Fiote cantar “Bom Dia geeennnte!” pra todo mundo na ponte. Ele ia esquecer seus problemas, ao ver aquele menino grande, quase da sua idade, mas que a deficiência não deixou crescer, fazendo a travessia, de lado, pernada a pernada, saltitando atrás da mãe. Com os olhos tão azuis quanto o céu, Fiote segue uma senhora de longos cabelos presos em rabo de cavalo. Ela vai séria, reta, nem olha pras tábuas, nem pra trás, nem pro rio, nem vê o povo, enquanto ele, distribui “cocão” na cabeça dos pescadores e repetindo, na voz embolada, o sorriso do “Bom Dia geeennnte!”.

O pescador que apela e jura que um dia vai revidar o toc-toc na muleira, busca o Dourado. E lá está Isabela na terra de ceux aimants, assustada pelo poder que os bichos lá ganharam. Bicho que o povo agora se enamora, porque nem no anzol, ninguém pega mais ninguém. Mas eu queria que ela estivesse aqui para poder ver, o que eu vi, nos olhos de um homem bacana, no domingo, diante do bailar verde do meu quintal, a frase que as estatísticas de Paris deixaram de fora. Com a voz firme, o pedido de olha no meu olho, seguros na minha mão, perguntou-me se eu gostaria de ser a sua namorada. Se eterna, só o tempo. De perene, o homem que acredita que o amor ainda tem sua razão de existir mesmo depois que a gente cresce.

Penso de novo que Paris é bonito, que Tião tá costurando muito, que Chico devia viajar e que Isabela podia acreditar no amor. O celular apita a mensagem, é dele: “Tenha um bom dia, meu bem!”

Queria que estivessem aqui, sobre a Ponte São Marechal Hermes
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3 comentários:

  1. Valéria,

    Parabéns,você escreve de forma que a leitura se torna um grande prazer,li todos os textos dessa pagina e ja estou esperando por mais.

    Gostei muito da sua forma de escrever.

    Um grande abraço.

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  2. Obrigada, João.Muito grata mesmo

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  3. Olá minha querida amiga Valéria,


    Olá querida amiga Valéria,
    Você escreve com a alma e o leitor, com os olhos, devora cada palavra.
    As palavras, escritas numa cadência harmoniosa, envolvem o leitor de tal forma, que seu coração se acelera numa arritmia tresloucada de emoção. É uma escritora de "mão cheia" como se diz de algo que a pessoa faz melhor que ninguém.
    Amei seu conto.
    Deus a abençoe.
    Carinhoso e fraterno abraço,
    Lilian

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