Chove no tapete verde do meu quintal...



Depois que ele cresceu e a cabeça já estampava o prata da idade, resolveu remoçar. E começou aos setenta e cinco anos de idade, pela tinta preta até nas sobrancelhas, logo que se enamorou da foto enviada pela internet.

Na ânsia de viver, negligenciou a própria saúde, deixando de lado o alerta do avanço da doença. Viajou mais de mil quilômetros pra ver de perto a menina que o chamava de “lindo”, “gatão” mesclados de beijinhos libidinosos. Entregou-se a essa luxúria, salpicando-a de presentes variados e negando-se em ver, se da parte da internauta, era amor ou dinheiro. Por sua atenção, comprou-lhe um carro zero e ainda adotou para si as crianças da nova mulher nova.

Recebia dela, afiançada por doar-se a um homem quarenta anos mais velho, o codinome de amor, sussurrado até pra quem não quisesse ouvir. Dos companheiros que não se afastou, comprometidos tapinhas nas costas, somadas à piadas indecentes em busca da fórmula mágica daquele abate. Mas era ir embora, com aquele jeito de andar cambaleante que só a idade sabe trazer, para que os cochichos de gozação passassem a fazer parte do prato do dia. Não adiantou os pedidos, o alerta manso da família. Preferiu cobrir o espelho das mil desculpas de felicidade para mascarar o óbvio.

No início a família achou que passava. Afinal, sempre fora um galanteador, mesmo que rigoroso com a família, frequentador dos mais altos níveis da sociedade. Um colecionador de méritos por se fazer vencedor de muitos empecilhos e ter construído um respeitável patrimônio. Era mais uma fase, dava pra aguentar. Iriam zelar por sua integridade física, como sempre. Tudo parecia estar sob o controle do olhar, até o dia em que ele anunciou sua mudança pra casa da namorada nada virtual.

Fomos almoçar juntos. Seu jeito trôpego escancarava evidências da saúde abalada, o carcinoma não lhe dera trégua. Ele queria que eu acreditasse que a moça o amava: incondicionalmente. Pra não escutar, volta e meia, interpelava-me com causos das atitudes nobres da moça. E simulava felicidade. Estava ótimo! Vi, nos gestos dele, um pedido de "eu preciso acreditar nisto!"

Expus, da forma mais carinhosa que pude que ele deveria ser cauteloso. Que o maior patrimônio da vida dele, era a família que ele estava deixando. A mulher, aquela com quem se casara, estava um trapinho de dar dó. Já aceitara a separação, topava amizade, mas do jeito que ele estava fazendo, não estava certo. Tentei, como último apelo, lembrar que o natal estava chegando e se ele não estivesse presente, como os filhos e netos iriam administrar sua falta?

Fez que não escutou; o natal seria com a moça e os "baibes".

Ao vê-lo se esforçando em ser convincente na paixão concebida, mãos tremendo pelo Parkinson, o cheiro forte da doença... me calei. Aquele homem à minha frente fazendo-se de forte cansou-se dos filhos, da mulher e arrumou outra família já pronta. Na que criou larga o peso, o tormento: é o fim. Na pronta encontra redenção. Quer renascer no tempo que lhe resta.


Como posso pedi-lo pra não sonhar? Como dizer que está difícil vê-lo em um grande engodo, se ele, fingindo um sorriso, nada escuta, não quer ver? Quê poder de argumentação eu tenho se, provavelmente, fui o alvo das suas orações, nos pedidos de alívio? Como posso pedir ao meu pai que não nos abandone, se a sua atitude diz que se cansou de mim, dos meus irmãos, da minha mãe, da nossa gente?


No final, ele disse que iria reunir todos e repartir os bens. Perguntou-me o que eu queria. Mas eu, entortada diante da situação, deixei que ele resolvesse coisas de patrimônio com o resto da família.

Na despedida, no elevador, ele ia me beijar e eu ia implorar, mas a porta fria, implacável, fechou-se na nossa frente, indiferente da minha tentativa de poder impedi-la, com socos e chutes. Desceu e nos separou. Igual a vida.

Em casa procuro companhia. Leio e releio o desabafo de Clarice, Mirian R, Isabela B., Salomão e outras histórias de vida que guardei no meu caderno de recortes. São amigos virtuais que se sentam hoje a minha mesa pra falarmos de dores e experiências.


Chove no tapete verde do meu quintal...

12 comentários:

  1. A historia é comovente. Talvez como o fim era certo ele quisesse sentir um pouco mais da jovialidade da vida.
    Como se saboreasse o último calice do vinho da vida.
    Deixar uns para trás, os familiares,... acho que algumas pessoas são capazes, parece egoismo, talvez sim, talvez não. O fato que se ele fez, quem sabe no passado ele sentiu o mesmo, fizeram com ele?!? São os ultimos minutos...
    Lindo texto.

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  2. O tema emocionante, triste pelo fato do desprezo por uma vida inteira agora trocada por algo incerto, na pueril tentativa de, enfim, tentar viver um sonho.

    Como narrativa, impecável. Prende e emociona o leitor.

    Gostei muito.

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  3. A alma humana na busca da felicidade nem sempre se dá conta dos envolvimentos que esta procura acarreta. Muitas vezes lançamos mão de uma reforma em nossas vidas para simplesmente deixar tudo de lado e se atirar cegamente numa aventura esperando que o acaso decida nosso destino! Penso que a solidão seja o combustível que alimenta e objetiva atitudes só compreendidas por aqueles que visualizam uma saída numa ilusão.
    Ótimo texto, parabéns!

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  4. Anônimo19:31

    Olha, ótimo tema abordado.
    As palavra do JS Pereira dizem tudo.
    As vezes uma vida inteira de batalhas, sacrificios, ter que abrir mão de luxos e gozos para seder as necessidades dos filhos.
    Quandos os viu já donos de seu próprio destino , quis recobrar o tempo e aproveitar tudo que perderá no passado.
    Sensacional...
    Parabenssss

    Rycuxo
    http://www.aisimhein.com.br

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  5. Oi Valéria. Lindo texto. Situação comovente. Difícil aceitar a decisão dos outros. Difícil ver alguem cometer algum ato que consideramos um erro e não tentar interferir. Quem o egoísta? O que vai embora deixando tudo para trás ou o que quer reter as pessoas mesmo contra a vontade delas? Sinceramente não sei. O que tenho aprendido é respeitar as vontades alheias, mesmo quando não concordo com elas. Mas reconheço que é difícil apoiar os sonhos alheios, quando acreditamos que eles não passam de ilusões, e que a pessoa que amamos vai sofrer na hora da verdade. E quando isso acontece com pessoas que nos são próximas, e já de uma certa idade, mais complicado ainda. De qualquer forma, acredito que todos temos o direito de fazer nossas próprias escolhas. Algumas escolhas que fazemos, espalham lágrimas, outras alegrias ao nosso redor. Faz parte. E concordo com quem disse: deixemos nossos queridos velhos viverem seus últimos sonhos... Nosso papel neste momento é apenas o de ficar atentos para apoiar quando for necessário. Abs Denize

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  6. Mais uma das muitas histórias reais que vem aumentando no dia-a-dia, haja vista o poder de sedução que o mundo virtual consegue exercer sobre os mais desavisados ou ingênuos, ainda que, pelos muitos anos vividos, reúna farta experiência e saiba como enfrentar os engodos que a vida oferece sob a forma de amores, anjos, paixões, princesas...
    É fato que tenha o direito de decidir como viver os últimos dias, de ter-se cansado da família que construiu ao longo dos anos, da mulher, filhos e netos, de tudo o mais viveu – e deixou de viver -, das lutas para mantê-la “família”, como é certo que mulher, filhos e netos, estes, se com idade para tal, envidarem esforços para dissuadir o patriarca da aventura. A meu ver, este é mais legítimo que aquele.
    Ainda que houvesse um segundo capítulo, em que se colocaria as muitas razões pelo cansaço da família, penso que devem ser dadas novas oportunidades para acertar ou recomeçar uma nova etapa e não o início de uma aventura pura e simplesmente. Meu argumento diz respeito a tudo que trás implícito e explícito na palavra aventura: 1.Empresa, empreendimento, ou experiência arriscada, perigosa, incomum, de finalidade ou decorrência incertas; 5.Ligação amorosa, em geral passageira e inconseqüente.
    Quando temos o corpo invadido por um vírus qualquer, todos os órgãos reagem a fim de expulsar o invasor, para trazer de volta sua saúde e harmonia. Isto não acontece por um simples zelo, mas é questão de sobrevivência do corpo invadido. Não é diferente com a família quando “atacada” ou “invadida” por algo pernicioso: drogas, adultério (na história, com nome de aventura), envolvimento com o mundo do crime etc.
    Não podemos fantasiar ou dar um ar novelesco a uma situação dessas, ainda que a sociedade aceite ou veja como normal. Mesmo que não fosse por dinheiro, que fosse por paixão – por amor jamais, amor não é isso – ainda assim não seria normal. A internauta apaixonou-se pelo homem errado. Apaixonou-se por um homem casado, pai, avô. Enfim, um chefe de família. Normal seria se ela, conseguindo enxergar isto, decidisse ir atrás do seu legítimo amor. Alguém que, como ela, estivesse à procura do seu par.
    Os laços que Satanás tem colocado à volta das famílias têm lindas faces. Satanás, não se mostra ou se apresenta à família com rabo e chifres. Apresenta-se sob a forma de uma internauta de 35 anos, apaixonada pelo garotão de 75 – e não tenho preconceito pela diferença de idades. Mostra-se sob a forma de um rapaz lindo, galanteador, que distribui presentes a todos os membros da família, que apaixonou-se pela menina de 16, que ainda é uma menina mas anseia por ser mulher e, quando dão conta, ele não pertence a outra família bem sucedida, mas é o mais temido traficante do bairro. Satanás pode se apresentar ainda na pele de um grande empresário para seduzir toda uma família e roubar-lhe os mais preciosos bens. Estes podem envolver tão somente vidas, mas também o patrimônio conquistado através de muito trabalho e suor.
    João 10:10 diz: “O ladrão só vem para roubar, matar e destruir...” O ladrão a que se refere o apóstolo João é Satanás. Sua estratégia, ao pôr laços às famílias é roubar: a paz, a alegria, a harmonia, a dignidade; matar: o amor entre marido e mulher, pais e filhos, a própria vida dos envolvidos – literalmente falando, conforme exemplificado anteriormente; destruir: casamentos, famílias, lares, relacionamentos... Na história fica evidente estas três coisas.
    Não podemos esquecer que vivemos em ambos os planos: espiritual e material. E a Bíblia diz que “o mundo inteiro jaz no Maligno” (I. João 5:19). O Diabo cega as pessoas e estas agem, am algumas circunstâncias, de maneira insana e rebelde.

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  7. quando crescer quero escrever "bunito" assim!
    (o final foi diferente do que imaginava... há!)
    ;-)
    bjoss

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  8. Sem palavras! Tocante! Parabéns!! beijos...

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  9. Eu duvido que ele não soubesse a verdade o tempo todo. Para mim, é óbvio que ele sabia de tudo embora demonstrasse estar de fato envolvido. Ele sabia e não se importava. Sabia do "esquema" de sua conquista virtual & cia., sabia dos cochichos e gozações.Sabia que ia perder em algum ponto do caminho, mas não se importava. Por que? Porque uma das características dos mais velhos é ter ciência e outra é não se importar com o que dizem e falam. Se fosse a história de um rapaz de 20 anos, eu diria que este sim estaria cego e sendo enganado em sua paixão. Por alguma razão e principalmente sabendo que o fim estava próximo, ele decidiu viver esta aventura. Deixou que todos pensassem que ele estava iludido, inclusive a mulher virtual. Mas não estava. Se gastou e pagou, era o preço do ticket daquela aventura. Tudo tem um preço. Se tivesse ficado em casa, quietinho e comportado, esperando o fim, talvez ouvisse apenas "oi, vô!", "Oi, pai!", "Vem almoçar". Qual seria o preço de ser chamado de "amor" naquela altura da vida? Com relação aos familiares, uma vez uma psicóloga me explicou que tratamos as pessoas mais próximas de nós pior do que as que mal conhecemos. Por que isso? Porque sabemos que somos amados pelas pessoas próximas e que não iremos jamais perdê-las. Se ele fez o que fez é porque ele sabia que era amado e que jamais iria perdê-los, como ficou provado na segunda parte desta história.

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  10. Leila querida, com a dolorosa experiência vivida acredito que não há nada mais delicioso do que "Bom Dia Mãe", "vem almoçar"... São rotinas maravilhosas cujo preço é inestimável e às quais morro de saudade. Pagaria com prazer tudo que tenho para te-las de volta... As vezes, me pego incrédula, pegando o telefone pra dizer: oi , tou com tanta saudade! Mas eles não estão mais lá...

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  11. Caramba!
    A cada texto você mostra-se "mais" insuperável!
    P * A * R * A * B * É * N * S !!!
    Maria

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  12. Olá querida amiga Valéria,

    Uma crônica relatada de forma impecável. Parabéns!
    A cada conto você se supera e me surpreende. Fico maravilhada e sem saber o que comentar. Embora comentários que li se resumam a dizer que o Garotão de 75 anos deveria viver feliz seus últimos momentos de vida, penso e repenso, e colocando-me lugar da filha, acho que minha reação seria a mesma, a de tentar resgatar o pai de um engodo e de um sofrimento maior. E, numa tentativa sem sucesso, ficaria sem chão e vivendo da recordação, da saudade e da tristeza em não resolver de forma melhor a situação.

    Beijos querida.
    Carinhoso e fraterno abraço,
    Lilian

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