Caso de Polícia
Era de esquina, o Bar dos Monstros. Variedade em pingas e pés inchados. Mas, não era moderno, como o boteco que coloca de raiz à caranguejo, dentro da garrafa. Não, não. Era cachaça ruim mesmo, de fundo de quintal escuso, de beira de canavial que libera álcool, no afã de adormecer almas manchadas de carvão e sangue verde.
O Bar dos Monstros era a escória do mundo, amotinado por resto de gente sem vergonha. Velhos que tiravam do sustento dos seus, pra ficar de babugens e vômitos pela calçada. Espelho do dejeto humano, pesadelo dos mortais bebedores de cerveja. Ali, eles se matavam, senão pela pinga, pelas mãos, na faca ou na paulada. Por isto, nem a polícia passava por lá. Só o camburão, no dia de levar um ou outro pra cidade dos pés juntos, ora sucumbido pelo gole, ora morto de morte matada.
Neste meio tempo, a novidade trazida pela tela da Tv, com direito a filmes, reportagens esclarecendo as táticas e o “poder” das ações, foi tiro e queda: gerou no pessoal mais novo, a brilhante idéia em ser do mal. Daí, nasceram gangues de todo nome e jeitos: “A Firma”, “Morte Súbita”, “Lado B”, e pra ficar tudo certo e combinando, “As Viúvas Negras” , só de meninas.
Juntos ou separados, seguiam o que a telinha ensinava: pedágio para passar na rua - seja de carro, bicicleta, a pé ou carroça - assalto com revolver de brinquedo, e finalmente, depois de um matando o outro; o toque de recolher. O Bar dos Monstros virou filminho de assombração, diante do inferno contundente, provocado pelas gangues na cidade. Este era o cenário, naquela época: um longa-metragem de terror.
Mas existia um sujeito, que recebera o nome de mulher, porque o pai, assíduo freqüentador do Bar dos Monstros, depois de tantos filhos e cachaça, nem diferenciava se era menino ou menina. Assim, recebeu o nome de Irismar dos Santos Reis.
Irismar cresceu vendo o pai bêbado, a mãe enrugada pela parição sequenciada, a esgoelar por um deus que lhe infligira dores, para que, depois da morte, conhecesse o paraíso. Por isto, e outras coisas, colocou na cabeça que era polícia.
E se portava como tal. Nos mandatos imaginados, ia de bicicleta, pela rua, zunindo, feito viatura com a sirene ligada. Owwwwnnnn, e todo mundo dava passagem. Se à pé e cara fechada, estava “investigando um bandido” e não pode nem cumprimentar! Todo mundo entendia aquilo e, se de zombaria ou trato, em qualquer canto que fosse, era recebido como Delegado Irismar.
Enquanto isto, o clamor da população enjaulada pelo toque de recolher, fez com que o digníssimo prefeito acionasse todas as forças, para trazer, os homens de preto com suas armas e armaduras. Daí, o GATE entrou na cidade.
Foi batida pra tudo quanto é lado. Neguim piscava, já levava bofetão e ia chorar no xadrez. As “Viúvas Negras” viraram aranhas de parede, coisinha de quinta, daquela que criança mata com chinelinho do Puft. E nesta de vai pra lá, prende pra cá, levaram Irismar pra cadeia.
Isso aconteceu bem no dia que o Gate deu de cara com os monstros do bar. A cadeia não merecia aqueles zumbis! Já iam até embora, quando ele entrou. Apesar de lúcido, portava um canivete de brinquedo, mesmo que só fora ali buscar o pai. Não adiantou os pedidos fedendo a álcool, dos bafos incompreensíveis de clemência, do protege daqui e dali. Irismar foi preso. Com direito a empurrão e tudo, pra dentro da viatura.
Destituído do seu disfarce, Irismar foi tomado de profunda tristeza. Talvez a maior da vida dele. Nada o tirou daquele sofrimento recolhido na parede da cela. Nenhuma brincadeira, nenhuma comida, nenhum pedido ao “delegado Irismar” fez com que, ao menos, se mexesse. Nada levantava a cara pregada no chão.
Um dia desmaiou. Foi retirado por policiais da cidade, que logo o reconheceram. E no combina daqui, combina dali, entre o soro e o remédio:
- Parabéns Delegado. Você passou no teste! – depois, o sinal de continência! Irismar ainda teve tempo de sorrir, antes entrar em convulsão.
Foi levado para o hospital com a pressa de quem ainda busca alcançar a vida. E não ficou sozinho. Todo hora do dia ou da noite, tinha alguém lá, de policia a bandido, de cidadão a cachaceiro, na janela do quarto chamando por ele, “vamos delegado, você agora tem até medalha”. E isto, só isso, trouxe Irismar de volta.
Vitorioso, hoje, passa pela rua, com seu indefectível par de óculos escuro, boné, canivete - agora de verdade - na cintura, fazendo owwwwnnnn. Estampa uma estrela no peito, medalhão de banca de camelô, condecoração dos fardados, e por ele luta até a morte. Está curado, voltou a ser policia, investigador, salvador das dores e mazelas do seu mundo.
Gostei muito do texto., uma história que chama muita atenção.
ResponderExcluirParabéns pelo post.
olá minha rica!!!
ResponderExcluirmas bah guria tua escrita é fabulosa
me senti pressa fui ao hospital passei pelo buteco e entrei em minha viatura mas com meu oculos new wey hehe
bem ai fica o lema de Rauzito "coragem coragem se o q vc quer é aquilo q pensa e faz coragem eu sei q vc pode mais"
acho q é isso q precisamos coragem mais coragem ...
Querida amiga 1000
ResponderExcluirEu senti o peso de cada cena.
E a grande força destes personagens!
Simplesmente brilhante!
Beijos
Espectacular, Valéria!
ResponderExcluirExtraordinário o boteco (que para mim é tasca), os seus frequentadores e Irismar que voltou à vida! Seja lá por por que razão, o crachá ou um canivete de verdade, o facto é que ele conseguiu vislumbrar-lhe um sentido!
Beijos!
Três vivas ao Irismar, que da barafunda do Bar dos Monstros saiu intacto com sua honra e coragem! Deus proteje os que são simples de coração e loucos como o Irismar!
ResponderExcluirMuito bom amiga
ResponderExcluirbeijos
Áááwhuá whuáa há ha´há´´meu Deus, que peça rara! rs! Adorei eçça, Valéria.Inferninhos iguais ao descrito, com hordas de tudo quanto é tipo, existem por todo lado mesmo; agora, o difícil é ter um "delegado" como eççe aí, de plantão, em uma bicicleta, pra cima e pra baixo, com sirene e tudo, rs!
ResponderExcluirParabéns por esta delícia de crônica!
Olá querida,
ResponderExcluirMuito bom.
Coisas que acontecem nesse brasilzão de Deus e que as vezes nos custa a creditar.
Você é Machadiana? rs
O que não faz um boteco pé sujo! Rs
Gostei do medalão de banca de camelô.Ali pelo centro do Rio tem muitos...
Valeu!
Beijão
OI chará...você conseguiu que eu visualizasse cada cena... riqueza de detalhes!
ResponderExcluirNão sei se tenho pena ou não do irismar... mas o fato é que me lembrei da atual história do cidadão que se passou por coronel e enganou a polícia uns bons meses.... só espero que ele não tenha o mesmo fim do Irismar, porque neste caso vai ser o fim mesmo!
Beijo no coração
Puxa, fazia tempo que queria me deliciar com suas estórias, mas época de mudança é fogo. Haja tempo pra tudo ...
ResponderExcluirAdorei esta. Como sempre, brilhante sua escrita. Suas estórias e histórias merecem ser reunidas num livro.
grande beijo
Muito interessante o texto, parabéns amiga, bjinhos...
ResponderExcluirTia Blah