Adão, Eva e Eu






Eu o vi assim que dobrei a esquina. Como não o identificara com nada nem ninguém que eu conhecesse, continuei meu caminho. Foi quando ele disse:

-“Ei, você, psiu!”

Agradecendo por estar usando meu pára-brisa preto, óculos que consegue deixar meu olhar indecifrável, firmei as vistas na figura que estava poucos metros a minha frente e dei uma varredura na sua estampa. Nada mau, foi o pensamento da imagem digitalizada. Porém, policiada de qualquer esboço, segui meu caminho para o trabalho, afinal, pensei, não deve ser comigo.

-“Psiu, moça. Ei você: bom dia!” - persistiu no chamado.

“Moça? Psiu? Ele tá mexendo comigo! Eu quis fugir, dar meia volta, mudar de passeio, mas ia dar bandeira demais. Então, apertei a passada, fiz cara de que nem via, nem escutava, protegida pelos óculos escuros. Mas cuidei de mim, quando, abaixando a cabeça, evitei tropeçar no ar, coisa que poderia deflagrar meu jeito menina de ser.

Estou fora do padrão global. Pneus, dobrinhas e dona de outros tantos atributos que, em nada, me colocam no top das models. Já sou gente grande, pinto os cabelos pra esconder os fios brancos, uso creme anti-rugas pra ganhar tempo e me acostumar com que a vida irá, implacavelmente, fazer com minha aparência.

Enquanto tentava manter passos retos e trançei a bolsa bem na altura do que ele poderia ressaltar assim que eu lhe desse as costas, lembrei-me que tinha ficado atônita, na noite anterior, ao descobrir que a pele das minhas mãos estava murchando. O tempo mostra sua força pelas mãos, foi o que conclui. Chequei a me deportar da terra, quando vi, nos olhos refletidos pelo espelho, a mesma menina, cheia de medo, que um dia teve de sair de casa, porque ia ter um filho sem se casar. Sem enxergar o caminho que pisava, lembrei que quis respostas numa estrada sem volta, num caminho em que a alma evapora, sugada, dia após dia, pelo medo, pela solidão, pela coragem que se tem que ter, pra ser o que nem se sabe que o que virá. Deve ser por isto que a gente acaba murcho, foi o que deduzi.

Mas não deve ser nada, se comparada à hora em que Deus expulsou Adão e Eva do paraíso, apenas um dia após terem sido criados. O temor, a vergonha, a impotência foram os primeiros sentimentos humanos que conheceram e que não souberam explicar, pois não os tinham nomeado. Para sobreviver ao que nada entendiam, se fizeram acolher por vestimentas e assim, se cobriram. Depois veio a fome, o frio, o isolamento. Então se abraçaram. Foi o primeiro abraço do principio da humanidade. Por quê será que Deus, de verdade, expulsou Adão e Eva do paraíso?

Hoje caminho para o envelhecer e não consigo encontrar referências entre eu e a casca que se forma fora de mim. Sei que não há como mudar. Perderei mais a forma física, enrugarei, encolherei, meus cabelos se tornarão mais brancos e ficarei diferente do que fui um dia, mesmo que o meu olhar diga pra mim, que ainda sou uma menina. É certo que terei adquirido conhecimentos e estes, às vezes, pesarão mais que a idade. Do mundo verei coisas que não precisaria ter visto, da vida, momentos que não tivessem existido. Muitos já foram, outros virão. E já começaram, ontem mesmo, quando meu filho, ensaiando os primeiros passos fora de casa, me deu "tiau,mãe". E a minha moça, lá de longe, chora no telefone querendo um colo que não posso dar.

Assim, sozinha, abraçada pela saudade, continuo a estrada. Como Adão e Eva caminho pela vida, para crescer, envelhecer e morrer.

É o processo de decantação. Esta deve ter sido a idéia de Deus. Decantar, para que da vida, reste somente o sopro do existir. Do que fica dentro dos olhos. Esta é a essência que é feita o éden.

- Gostosa! – ele falou.

E eu, com a cara mais lavada do mundo, levantei os óculos e respondi:

- Obrigada, meu bem!

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Ela estava um caquinho de dar dó. Das últimas semanas, bagagens lhe pesavam os ombros: do dinheiro difícil às presentes grosserias do filho mais velho contrapostas à saudade da doçura da caçula distante. Ainda por cima tinha a febre queimando-a de dentro pra fora. Não é doença, é cansaço de mulher sozinha, pensava. Os cabelos embranqueceram de uma hora pra outra e seu olhar envelhecido e sem brilho tirava-lhe o restante das forças. Tamanha solidão a fez chorar em frente ao espelho.

“-Por quê a gente envelhece?” – lamentou-se.

Mas não se deixaria abater. Primeiro, ainda tinha uma ponta de esperança das coisas melhorarem, depois porque a vida continuava nos filhos crescendo. Por ai, resolveu arrumar a casa pra espantar os maus espíritos, pra se fazer mexer, girar energia, mudar o que estava estagnando, sei lá mais o quê. De certo é que tinha de tirar a urucubaca do corpo.

Se a vida te dá um limão, faz uma limonada, lembrou. E esta manhã merecia uma caipirinha! Ia se dar esta força!


Assim começou a arrumação e caipirinha: espana, varre, joga água, troca móveis de lugar, som nas caixas. Terminou a dose. Encontrou companhia. Lágrimas ajudaram-na lavar o chão. Nas letras das músicas vislumbrou formas de expurgar as dores que ruminavam seu peito.

Depois buscou cerveja. Duas garrafas esvaziadas com calma e vassoura virou microfone e o rodo seu par na contra dança. Almofadas formaram uma platéia ativa. Janelas abertas e o vento a aplaudiu, lambendo seu rosto de carinho. No final da manhã quando a casa já estava um brinco, pôde sentir o contraste da assombração que ela queria limpar. Daí quê, pra descansar a alma, foi à padaria comprar mais cerveja.

E foi! Desfilou de chinelo, bermuda, suor e rabo de cavalo, até a esquina. Azar de quem achasse de mais ou de menos. Problema dos bobos da oficina da frente e suas piadas indecentes.

De posse das garrafas, já ensaiava a volta quando viu o filho abrutalhado entrar na casa recém arrumada.
E mais essa agora, pensou sentida, não ia mais poder ligar o som. Diante disto resolver tomar ali mesmo, quantas cervejas fossem pra lhe trazer o sono... E é ai que começa a história que vou contar.

Foi na metade da primeira cerveja que deu de cara com ele. O susto fez com que suas mãos se tocassem de um jeito diferente, as lembranças de um tempo feliz permitissem um abraço sem pudor, sem a preocupação com gente ao lado. E quando se sentaram à mesinha da padaria ficaram por um bom tempo calados. Estavam emocionados na presença um do outro. Então, só se olharam, só se tocaram. Falar o quê?

Ele mais grisalho, engordado um pouco, mantinha o mesmo sorriso escondido na cara fechada. Ela lembrou que ele era um homem bom, cheio de gestos ternos e cautelosos e que se não estavam juntos foi por imposição dela. Quem mandou um ser preto o outro branco, um magro outro gordo, um do mato outro da cidade, um graduado e o outro nem terminado a quarta série? Como leva-lo para um mundo de etiquetas, doutores, regras e tecnologias? Como levar ela para um mundo sem computador, sem os filhos que agora começavam a pegar rumo na vida?

Lembrou-se que a ciência destes fatos eram dos dois. Duas pessoas em mundos tão opostos que um dia viveram momentos intensos, felizes, mas insuficientes para prosseguirem. Na época que se conheceram resolveram seguir assim mesmo. Que fossem até a onde dessem conta. Até que as diferenças pesassem.

Ele, que se dizia forte, chorou no dia que ela pediu pra acabar. Estava preparado para largar tudo e levar ela pro mato mais ele. Azar das querelas. Mas ela não tinha conseguido desabrigar-se das diferenças. Assim, ele foi embora cabisbaixo, jurando nunca mais pisar os pés ali.

- Perdoa eu, nunca te quis mal - conseguiu falar.
- Não tem o quê... você é um homem bom, mas não vê que este mundo não é nosso?

Ela se sentiu acalentada com a presença dele e esqueceu o que vinha vivendo. Pra ajudar, a chuva de verão desceu, resguardando aquele momento e eles se amoitaram em um barzinho de quinta, rindo e jogando sinuca. Nesta hora, nesta tarde, o rompimento estava esquecido. Mais forte que isto tinha a saudade pra ser abatida.

- O que deu em você pra aparecer assim, de repente? - ela perguntou.
- Vim te trazer o dinheiro.
- Quê dinheiro?
- Lembra que você pagou a conta do restaurante, naquela tarde?
- Mas seu dinheiro tinha acabado!
- Eu não podia ficar te devendo.- acrescentou ele esticando a mão com o dinheiro entre os dedos.

O fim de semana ficou comprido. Ninguém soube, ninguém viu. Sábado à noite foram dançar. Domingo ela deixou o filho, ainda emburrado, em casa e foi pra beira do rio mais ele.

Acolhida nos seus braços ela achava que podia respirar aliviada das suas dores. Mas com a chegada da noite a febre voltou.
- Não posso deixar ocê voltar pra casa assim - insistiu ele
- Meu filho está lá, não ficarei sozinha.
- Mas ele não vai cuidar d´ocê, eu vou.

E arrumou um quarto em uma pensão qualquer. Lá se enrolou em um cobertor com ela, zelando sua respiração, respondendo ao delírio dela:
- Você fez nossa casinha branca, meu bem?
- Bem no pé da serra - sussurou pra ela.

Já era noite alta quando ela voltou a si. Ficaram conversando amenidades até o dia amanhecer pra só depois se separarem. Ela retornou pra o seu mundo e ele pro dele. Descobriram que outra forma de fazer amor era sendo o amor. Estavam em paz. Como os anjos.

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