Minha vida esta em cada pedacinho desse cerrado e não existe outro lugar no mundo, onde eu pudesse crescer mais forte, disse-me o homem Manoel Antônio, naquela manhã de segunda-feira, quando me ajudava a empilhar as caixas do "Licor do Cerrado", pra eu levar pra distribuidora. E para ilustrar sua certeza, acrescentou que "quem não conhece, pensa que as coisas da vida são coincidências, mas quem tem raízes aqui, sabe reconhecer a comunhão dos seres". Como naquele dia, em que tudo, da terra ao céu, deu pra fazer parte de uma angustia. A angustia que latejava no peito de um menino de coração acabrunhado.
Começou desde que o sol, botando a cara pra fora, clareando o chão, escancarou as nuvens cinzas de chuva, tristonha e fria, sobre a terra chorosa. Bem lá no alto, cabisbaixo, o céu parecia tão lento, que de tão jururu, estampava uma cara medonha. Junto ao céu, descendo um pouco mais, o vento soprava manso, talvez para que as copas dos pés de árvores, compadecidas pela dor do menino, se curvassem em sinal de respeito. Pela terra e ao redor, um monte de bicho recolhido, cada qual no seu canto, cada qual no seu jeito de fazer silencio. Das galinhas empoleiradas com um pé só à Japão, o cachorro, melhor amigo, que com os olhão comprido, ficou lá, rendido no chão. E bem no meio disso tudo, tinha a casa e até ela, cheia de gente, feito dia de festa, escancarando sua velhice melancólica pelo buraco do reboco, nas silenciosas teias de aranha tecidas nos cantos das paredes de reboco. E para o menino Toninho, o conjunto de todas estas coisas, era o jeito do cerrado chorar mais ele.
Descobriu isto desde o início, quando Mariana, a mais velha dos cinco, com a cara amassada de tanto lastimar, mandou que ele fosse ligeiro, chamar Dona Zefa, a vizinha de cerca e, até lá na frente, quase no fim do caminho, escutou os gritos do pranto desvairado, sem dó nem vergonha da irmã. Depois, Dona Zefa, cheia de espanto e assombração, chegou dando ordem pra tudo quanto é lado, fazendo até a irmã engolir o choro e ir passar o vestido estampado, o preferido da mãe. Toninho ainda estava intrigado, quando a negra Das Dores e Raimunda de Benvindo levaram baldes e mais baldes, cheios de água e sabão, pra dentro do quarto. Ainda, neste interím, Mariana, fungando o nariz avermelhado, mandou, mansamente, que os quatro fossem se lavar e eles foram sem saber direito o porque, mas fizeram filinha na porta do banheiro, sem reclamação, nem briga. Todos, da maior a menor, Maria Celma, Maria Célia, Maria Celina e ele, Manoel Antônio que tinha os nomes do pai e da mãe, se banharam na águia fria feito o tempo e ficaram esquecidos no longo banco de madeira na porta da cozinha.
E bem que ele teria ficado ali, quieto, todo calado por dentro e por fora, só reparando na mexida das mulheres, de lá pra cá, de cima pra baixo, mas não se aguentou, por causa do frio da terra que cresceu dentro da sua barriga, quando Dona Raimunda falou bem assim:
- A mãe docês morreu. Pegou outro rumo, foi encontrar com Deus, lá no céu.
De cara ficou abobalhado com as palavras dela, assim, sem ter nem porque, a repetir na sua cabeça, "morreu, foi encontrar com Deus". Um eco miúdo, a voz esganiçada fazendo morada dentro do seu ouvido, num repetir esquisito, com gosto de jiló esquecido na boca. Nesta hora, o céu fechou de vez, fazendo companhia, agarrado, ao choro das quatro irmãs. Mas só quando a chuva desceu forte, ele começou a somar A mais B.
Ficou cheio de "por isso". Primeiro, quando foi pra perto da mãe escovada, dentro de um caixão de tabuas de madeira e, de pé mesmo, nem sentiu medo dela ver suas unhas recheadas de sujeira. Depois, quando encostou a cara bem perto da dela, para ver o que não acreditava, porque pra ele, só os bichos morriam, só os vizinhos lá de longe, só aqueles que tinha ouvido contar nas prosas dos vizinhos e, nessas histórias, "não tinha mãe morrida não". Por isso, estava pasmado. Por isso, ficou sem voz, por isso não saiu correndo de dor e pavor, ao deparar- se com a mãe de cara fria e mãos atadas por cordão e terço, bem no meio da barriga. Por isso, descobriu que a medo da morte é a dor.
Só, era só por isso. Mesmo porque, ela estava muito diferente! Não tinha aquele jeito de quem sente dor, não tinha girado a cabeça pra ver que ele tinha chegado perto dela. Não tinha sorrido com os olhos, não tinha falado que tudo ia passar. Ainda sem acreditar que as mães morrem, aproximou-se mais dela e chamou baixinho "mãe, mãe". Duas vezes. Mas ela continuou como estava. Ai, um nó agarrou na sua garganta e dali não saiu mais nenhum som.
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"Como Deus vai reconhecer a mãe?"
foi a questão mais séria, por ser sem resposta,
que tomou conta dos seus oito anos e dominou seu jeito na aflição.
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Quis desatar a aflição, primeiro pela raiva que sentiu da verdade na fala de Dona Raimunda, "morreu, foi encontrar com Deus", depois pelo medo do outro caminho que ele não sabia qual direção era, e ia até chorar, mas se lembrou que desde que o pai tinha sumido, era ele o homem da casa e, "homem não chora, resolve". E foi ai que ficou ao lado dela, a fixar-se na procura por um gesto, uma só indicação que como era aquele partir, de como deveria ser o caminho, a caminhada, o encontro com Deus. Horas rodopiando em idéias, salpicando em lampejos com esta ou aquela questão, fazendo perguntas e recebendo respostas na cabeça. Mas, desesperou-se, quando uma conjectura dominou outro rumo e dele não encontrou mais solução, por causadeque, por outro lado, se tudo tinha um jeito de ser, sua mãe emagrecera tanto, mais tanto, que "como Deus vai reconhecer a mãe?" foi a questão mais séria, por ser sem resposta, que tomou conta dos seus oito anos e dominou seu jeito na aflição.
O cerrado deu pra chorar mais alto, atirando com forças, lágrimas lá do céu e a casinha amarelada de uma janela e uma porta só, que agora guardava o murmurar de um bocado de gente apinhada, viu a aflição do menino, paralisado, naquela última questão sem resposta.
Ele não sentiu nem frio, nem calor. Não ouviu o buchicho das pessoas a compadecer do seu olhar perdido. Não reparou que Dona Zefa, queria porque queria, que ele saísse dali. No engaufiado de pessoas de todo jeito, Toninho, olho preso no corpo inerte da mãe, só escutava as questão do seu próprio coração devassado.
- Como Deus vai reconhecer ela? - perguntou em voz alta pra quem pudesse se interessar.
Mas devia ser porque o povo andava ocupado demais ou não gostavam de responder pergunta de menino, que não recebeu nem uma palavra de volta. Nada de nada.
Apôs aos seus pensamentos, o cheiro das velas e do café, a embaralhar-se com o perfume das mulheres, o suor das pessoas, a água sanitária nas roupas, do cheiro do fumo de rolo queimando na palha de milho. E sabe-se lá, quanto cheiros mais. O resultado foi que seu estomago deu de embrulhar. Sentiu raiva do zum-zum-zum cochichado, da invisibilidade da sua pergunta, na lacuna suplicada por sua voz. Ia repetir a pergunta, com direito a falar grosso e tudo, quando Dona Zefa tombou, no meio da reza e ele, espremido, foi parar noutro lugar.
Encontrou Mariana na beirada do fogão, a soprar e remexer as brasas pra passar mais café:
- Mariana, como é que Deus vai reconhecer a mãe?
- Deixa disto menino, vai arrumar assunto! - respondeu entre uma fungada e uma soprada.
- Mas Mariana, olha ela lá. Ela mudou muito, tá tão esmagrecida e acabada. Escuta, eu vi Mariana, vi desde o dia em que o doutor mandou nós rezá com ela em casa, a diferenciação. Vi que nem Dona Zefa, que era assim mais ela, reconheceu a mãe. Cê não lembra, o povo falando, que ela tava com outra cara? Cê bem sabe que Japão é cachorro da casa faz tempo. Ele sempre gostou da mãe, mas naquele dia que ela chegou, até ele rosnou pra ela. Cê lembra, num lembra? Mariana, cê tá me escutando? Fala então, como Deus vai saber que é ela?
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Mesmo com toda força empregada, foi deixado pra lá.
O caminho, por assim dizer, o fim do velório e
o início da estrada para encontrar com Deus,
foi seguindo, feito boi indo pro matadouro.
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Toninho estava disposto a tudo pra botar a irmã pra entender sua preocupação, que resolvesse a tortura, reconhecendo o tamanho do problema! Mas ninguém parecia enxergar estas coisas.
- Se o pai tivesse aqui, ôces iam ver. Ele dava um jeito! - gritou de aflição.
- Cala a boca, menino - berrou Mariana atando os braços franzinos entre suas mãos grossas - Olha aqui, olha pra mim. Escuta bem sério. O pai sumiu - e depois repetiu de novo - su-miu! Ninguém sabe dele. E ele, nem sabe de nós!
- Sabe sim, o pai vai chegá e vai levá a gente pra escola, ele falou que ia fazer...
- Que gritaria é esta? - interrompeu Dona Raimunda com aquele jeitão de mandona - vem Mariana, a chuva parou. Tá na hora do enterro sair. Chama seu noivo pra ajudar levar o caixão!
- Levar o caixão? Sair pra onde? - esperneou Toninho - o caixão com a mãe? Ah, num vai não! Assim não pode! Ela vai se perder!! - gritou com a força do homem da casa.
E não houve uma só das Donas, ou por perto ou de longe, que conseguisse segurar seu tormento, estirado, largado, rasgado, agora, entre os gritos de solta, sai! Não houve um só homem que desse conta do seu rompante. Aos berros, murros no ar, pontapés, mordida e até beliscão, Toninho se abriu, feito muro, frente à todos, na tentativa de barrar o cortejo fúnebre. Até Japão veio em seu socorro, esbravejando de todo jeito, a fazer com que paus e o "sai miséria" fossem atrasados, diante de uma bocarra cheia de dentes arreganhados.
Mas não adiantou. Mesmo com toda força empregada, foi deixado pra lá. O caminho, por assim dizer, o fim do velório e o início da estrada para encontrar com Deus, foi seguido, feito boi de matadouro. Sem nenhuma importância. Por isto, com a dor estirando dentro peito, e sem caber dentro de si, correu desembestado, mato adentro, rasgando todo galho que via pela frente e só foi parar mesmo, debaixo de um pé de pequi.
- Mas, a vida tem coisas que a gente tem que aprender a ver com a alma! - disse-me o homem Manoel Antônio.
Porque foi estirado no chão que fez Toninho pensar na mãe, no tempo de saúde. Uma mãe de olhar manso, que gostava de acarinhar sua cabeça e dizer que ele era o homem da casa, até o pai voltar. "Só ela acreditava, comigo, que o pai ia voltar".
Só ela sabia tirar o medo dele, quando o trovão fazia festa no céu. Só ela sabia abraça-lo e parar o medo do finado Balbino. Só ela guardava o segredo de quando ele tinha estes medos. Só ela tinha um jeito diferente de banhar Japão sem ganhar uma rosnada. E neste reviver, neste carinho de saudade, a alma de criança passeou pelo quintal, adentrou no pasto, nos tempos de pitomba, jatobá e manga, em que todo mundo se lambuzava até os beiços!
A mesma alma, arfando descompassada, reviveu os gostos das fininhas tiras de mamão verde, que depois de enroladas feito cachos, eram costuradas umas com as outras, ligadas com linha grossa e viravam doce. Mastigou a goiaba vermelha, boa de comer, boa de catar bicho. Lembrou-se de outras épocas, das vezes em que estavam lá no mercado, nas ruas da cidade, espalhando as frutas do quintal, fazendo dinheiro para o arroz, óleo, carne e feijão, com o que o cerrado dava de graça pra eles. "Mas, o bom mesmo", acrescentou com um brilho na cara, "era no tempo de pequi!"
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Esta era a maior fartura que o cerrado dava pra gente.
E foi ai neste pensar da alma que Toninho descobriu a resposta.
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Naqueles dias, afundavam no mato pra catar a fruta no chão e iam vender na feira. Era a maior alegria! Dava boró e satisfação. Ele até sentiu o cheiro da feira, até escutou a voz da mãe: "olha o pequi gente, tá maduro e barato". No reviver destas emoções, conseguiu, naquela hora, se alegrar de como ela chocalhava as moedas dentro do saco de pano amarrado na cintura gorda. Ela era tão divertida! Cheio de lembrança e satisfação, comeu de novo, o melhor Arroz com Pequi da vida e tornou a dar risada, quando se lembrou dela dizendo que "Pequi é bom pra memória" e que o povo só entendia, quando arrotava o almoço, laaa por detardezinha... Dona Maria Antônia, Ramires, minha mãe, era a Tonha dos Pequi. Esta era a maior fartura que o cerrado dava pra gente. E foi ai neste pensar da alma que Toninho descobriu a resposta.
Ele viu, lá de longe, o caixão já preparando pra batizar a terra. Ordenou, apontando, que Japão fosse na frente, " pega, Japão, pega" e o cachorro, obediente, espalhou gente pra todo lado. Conseguiu ser levado à sério, logo de cara, pois foi com a força da decisão, lavado de alívio, que chegou. E com autoridade do "homem da casa" deu ordem pra tudo quanto é gente e por isto, não houve outro jeito, senão abrir o caixão, para que se resolvesse assim, a questão encontro.
- Agora sim, Mariana, Deus não vai ter jeito de errar. Ele vai reconhecer a mãe, a Tonha dos Pequi, assim que ela chegar, porque ela vai estar com "estas flor" na mão. E dizendo isto, depositou sobre o peito da mãe, um amontoado de flor de pequi.
Depois, em casa, com o coração repousado na paz do dever cumprindo, na questão resolvida, o pequeno grande homem Toninho se entregou a um sono gostoso, onde pode até ver Deus receber Tonha, bem na porta do céu. E foi com tanto carinho que Ele pegou estrada com ela, que ele pode, pela última vez, escutar as deliciosas gargalhadas da mãe.
- E pra completar aquela paz - completou o menino homem - Deus olhou nos meus olhos e falou bem assim: acorda Manoel Antonio, acorda meu filho, já pode ser um homem junto ao teu pai, que agora chega pra te buscar.
E quando Toninho acordou gritando "o pai voltou, o pai voltou" e Mariana fez aquela cara de quem pensava estar brotando na cabeça dele mais uma esquisitice, ficou guardado na memória dele, a felicidade dela, de Maria Celma, de Maria Célia e de Maria Celina, porque o pai agora era empregado de salário bom e tinha um caminhão apinhado de feira e presente.
E isto foi só por um tempo, porque quando o céu, abriu um sorriso plácido e gigante e dele saiu o sol de todos os dias, e levou Toninho e toda família pra cidade e pra escola, alguns anos depois, trouxe de volta o homem Manoel Antônio que acreditava que cerrado guardava o melhor das suas raízes e só ali era o canto dele.
- Entendeu Ramires? - perguntou-me ao depositar as mãos sobre a ultima caixa do carregamento do Licor do Cerrado, o puro sabor do Pequi. E eu que, não tive como conter a emoção, acenei que sim com a cabeça.
Quando botei o caminhão na estrada, tive a sensação de estar transportando mais do que garrafas com licor. Parado, no meio do caminho, me deixei olhar pr´aquele mar de céu azul, do verde do capim, do colorido dos pés de frutas, os pássaros e flores, nos outros Japões que vieram, na terra impregnada de Tonha dos Pequis, na obstinação do menino Toninho, no homem Manoel Antônio que dele se formou e tive a certeza absoluta de que os seres se unem na dor e no amor, e estão aqui, neste cerrado de Deus, nesta Terra de Pequi.
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(Esta Obra está Registrada em nome do autor Valéria de Melo Correa sob o número 137709879275981800, o autor tem um Certificado Digital de Direito Autoral que atesta este registro.)