Ilusão Serenada


No encontro de sábado, desde as 10 da manhã estavam Zezim Tulipa, Meia Noite, Pedro Melão e Tom. Sentaram no boteco da esquina que é bem buteco mesmo, daqueles que mantém óleo grudado na panela desde a primeira fritura, sabe-se lá quantos anos daqui pra traz. Pra proteger quem ali entra e sai, lá dentro impera a imagem de São Jorge dependurada bem no meio da parede. Ao lado, um cartaz grudado pelo tempo, carrega nas letras vermelhas a mensagem:


"A REALIDADE É UMA ILUSÃO QUE
OCORRE DEVIDO A FALTA DE ÁLCOOL."


Este é o Bar do Salineiro, de certo que um pouco empoeirado, mas é o que tem a cerveja mais gelada, a pinga mais irresistível, os melhores casos e os maiores amigos.


Foi isto que Orlindo pensou, quando lá da ponta da rua viu o quarteto em gargalhadas de pinga e cerveja na mão. Bem mais cedo tinha assumido o compromisso com a patroa “Vô só comprá carne. Volto antes do meio dia” e aquela altura da manhã já pedalava no meio do caminho com a carne de sol serenada pela lua cheia bem presa na traseira da bicicleta. Mas a visão dos amigos ali no Bar do Salineiro o fez pensar em dar uma paradinha pra tomar só uma e trocar umas poucas palavras com os amigos. Célia espera, e ele ainda tava dentro do horário. Podia parar.

Parou.

O que não era de plano acabou por sentar-se na cadeira pra escutar as últimas do político ladrão, de como foi de verdade que Maria de Berto, pegô ele, Berto, mais a outra, lá no barracão. Depois daquele jogo ruim que deixou o trio com gosto de poeira na boca. Sim foi o trio, porque Tom, esse era traíra, tinha ficado do lado de lá, e ainda por cima marcou aquele único gol. Ladrão, o juiz era sim, ladrão. Deu pênalti pra proteger Tom, o Cunhado, pois todo mundo ali na mesa sabia que Tom tava de caso com a gostosa da Tereza, irmã do Juiz ladrão. Tereza, a Tetê. Nossa, que bundão! E a boca? Mulher é cega mesmo, viu o quê no Tom?

Quem bebe e não come, assusta até lobisomem”, interrompeu Meia Noite o tema do momento.
Jesus, Maria e José , lembrou Orlindo segurando o pensamento com as duas mãos arregaladas no topo da cabeça, “a carne de Célia!”.

Os amigos o acalmaram. “Mulher, num se pode dar mole não, senão acostuma e daí o homem paga todos os pecados. Mulher tem que ser ali, no pulso. Se tomar as rédeas, oh, acabou! E tinha mais, a filha do Veio Tomás tinha fugido com outra mulher! Nossa, o mundo ta perdido! Será que é verdade mesmo? Como pudia, uma mulher linda daquela! Mas o irmão, dizem, também é viado. A família ta condenada, desde que o avô quebrou!

E como a água sempre descobre um meio, a promessa da última, a saideira, o só mais esta, entreteu Orlindo que aceitou só pra provar, um tiquinho assim, do tira-gosto da carne de sol serenada, feita pelo próprio Salineiro. “Mas não é melhor que aquela que tá ali” disse apontando com os beiços a outra, agasalhada e bem presa na traseira da bicicleta. Depois contou uma história cumprida de como tinha feito pra sair de Buritizeiro e ir pedalando até Pirapora só pra buscar a carne e agradar Célia. Fazia tudo por aquela mulher. Mas, um dia traria uma manta de uns 2 kilos pros amigos, pra comer ali no bar. Eles iam ver a diferença. Não que a do Salineiro fosse de toda ruim, disse mastigando, mas a de Pirapora, hum, tem um segredo. Quem sabe, não descobriam?

O riso já ia solto, a saideira virado caixa e o dia dava sinais de se recolher. Pingas? Sei quantas foram não.

Orlindo apertou as mãos dos amigos. A tarde boa tinha virado “boa noite”, e pensando em Célia, na promessa de amanhã fazer uma farra sozinho mais ela, pegou rumo. Ia ser melhor assim. Com a cabeça cheia de idéias, sorriu, e a serenada da garupa, ganhou um olhar cheio de planos.

Eu o acompanhei, zique-zaqueando rua afora, até sumir. Feliz ele por não saber que a serenada era a ilusão carregada, porque fora a dele, ou melhor, a de Célia, a carne servida na mesa do buteco, bem pouco tempo atrás. Besta ele, achar que o quentim que forrou sua barriga, que os fiapos que tirou no palito, eram do tira gosto de Salineiro... Porquê no meio da risaiada, Zezim Tulipa, tirou a carne que era pra Célia e deu pra Salineiro fritar. E no bagageiro da bicicleta, o mesmo papel cinza, o mesmo cordão, enlaçou nada mais nada menos que um pedaço de tijolo bem ajeitado.

E lá se foi Orlindo pedalando mansamente, de um lado pro outro da rua, com mil sonhos e dois planos pra na hora que encontrar com Célia.

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O fim do Mundo


Lembro-me bem daqueles dias em que Buritizeiro ainda era novidade pra alguém como eu, recém chegada da cidade grande. Era também tempo de virada de século, bem na estréia do ano dois mil.

Naquele início de noite eu passeava pelas ruas, buscando seus moradores e aprendendo, encantada, às novidades que me eram proporcionadas pelos costumes da recém apresentada cidade. Minha mente fervilhava conhecendo pessoas de jeito desconfiado, olhar de soslaio, gente que vigia, enquanto conversa e, quando fala, a fala é mansa, cantada e sem pressa. As histórias já mexiam com minha imaginação, quando na porta de Neguim, a apresentação foi bruscamente interrompida pelos gritos:

- Jesus voltou! Jesus voltou! – berrou a voz na rua. E pelo tamanho do pulo no banco, ficou claro a seriedade do caso, com o susto da minha anfitriã - Gente, quequiéisso?

- Vem ! É o fim do mundo que chegô! – repetiu a voz ao apontar com o queixo, o decreto estampado bem na cara de toda gente.

Era um círculo. Uma bola gigantesca formatada com um furo bem no meio, brilhando feito prata lustrada. E pra completar a aparição, crescia e diminuía em forma ritmada, abrindo e fechando uma clareira na abóbada celeste! Um ohh, com a mão travando o grito na boca tomou conta de toda a gente. Dali em diante, fez-se o caos na cidade.

Homens acolhendo suas mulheres, crianças agasalhadas aos braços dos pais, gente de todas as idades cortando as ruas, num vai e vem frenético, deixando, no rastro, gritos de pavor! Era de arrepiar! E que ninguém duvide, porque era só virar osoi pra riba e confirmar: lá estava os sinais do fim do mundo, na cara do céu!

Na época, a televisão vinha alardeando, estampado em suas manchetes, com avais de Nostradamus e até de Mãe Diná, o prenúncio de que aquele ano seria sim, o adeus geral. “Mil verás, dois mil não passarás”, relembrava outra voz ao se benzer.

- Oh minha filha, Jesus precisa me perdoar. Pelo amor de Deus, leve eu pra casa. Preciso ver meus fio! Tenho quê pedi perdão - chorava a senhora,bem branquinha, que veio agarrar-se a mim.

Acomodada a mulher no carro, volante firme na mão pra contornar o povo boquiaberto no meio da rua, cara-a-cara com a aberração, lá fui eu, satisfazer o último desejo da dona. Não sei se o que me deixou estremecida foi o desespero do povo, se os gritos da mulher ou mesmo o branco engolindo o céu. O certo é que me fiz parte da multidão ensandecida.

Mãos tremendo ofertaram-lhe água com açúcar, assim que desceu do carro. O filho, aturdido, preferiu sentar-se silencioso à porta da casa e deixar perder o olhão triste no fim anunciado no céu. Ficou ali estagnado, suas pernas lhe avisaram, não adianta correr, a morte alcança de qualquer jeito. Ia dar uma de besta nada!... A menina, coitada, que na realidade era uma mulher de peitos fartos e mãe de cinco rebentos, fungava o nariz na palma da mão, assim, meio que embebedada, olhos pregados na velha mãe, querendo decorar em meio a tantas lágrimas, as rugas da sua progenitora. E foi bem assim que a velha, agarrada aos filhos e netos, descascou seu segredo. E eu, diante da cena dos abraçados, falando baixo feito reza, deixei a família trocando suas confissões. Voltei pra rua.

No carro sintonizei o rádio pra escutar qualquer tipo de elucidação para o caos que se formara na cidade. E como o ritmo Dance corria solto, sem interrupção do locutor, julguei, inicialmente, ter sido aquela escolha na despedida musical. Fugiram, deixaram qualquer coisa tocando, pensei. Cheguei visualizar a rádio abandonada, e sim, achei de mal gosto morrer assim, americanizada.

Enquanto ruminava sobre o estilo musical, fixei o olhar no céu. Na soma do dois mais dois observei que a bola acompanhava o ritmo vindo do som da música no rádio. Ainda buscando ligar uma coisa com a outra segui pra beira do rio São Francisco e a resposta, como um quebra cabeça, veio clarear o tamanho do Deus-nos-acuda.

Do outro lado do rio, cerca de 700 metros à minha frente, em festa, estava Pirapora. Do alto, do lado de Buritizeiro, onde eu estava, pude ver uma barraca toda branca, enorme, imponente e majestosa, armada bem na praia do Velho Chico. 


A boate itinerante, pra gritar sua estadia e atrair sua gente, riscava o céu com um canhão a laser. Era este o fim do mundo que dançava no céu.

Mais tarde vim a saber, que gente de todo jeito e tamanho, tanto de Pirapora quanto Buritizeiro, afiançou aquela coroação celeste como o fim dos tempos. E eu aqui, ré confessa, dou minha mão a palmatória: deixei-me levar pela aparição. Também, qualquer um ficava assim, se tivesse embreada, como eu, no meio da confusão e gritaria. E também, como todo mundo, não achei nenhuma graça quando a ficha caiu.

Hoje, mico bem pago, fico a rir de mim e de todos os pecadores que não consentiram que raciocínio imperasse. Porém, tanto aqui, quanto em Pirapora, quem não acha graça desta história é aquele que não se pode nem tocar no assunto. Talvez por ter dito muitos dos segredos e, por isto, arrepende-se. Mas, os poucos que dele falam e dão risadas, ficam a relembrar de fulano e cicrano e as mais variadas formas com que cada um encontrou pra viver o fim do mundo.

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O Rato e o Amor do Rato


Foto do meu quintal, tirada por mim às 5 da tarde.




O quintal da minha casa dá vistas para um quadro. Bem do alto da varanda, consigo ver, lá no fundo, carros que cruzam o asfalto da BR 365 ligando Montes Claros a Brasília. Se sentada na mesinha da cozinha, contemplo a pintura perfeita que, magistralmente, embaralha todos os tons de verde nas árvores, arbustos, capim e os pés de fruta que brincam com vento sob as bençãos de um céu infinitamente azul. Visualizou? O quintal da minha casa é uma fazenda.

Daí que não é nada incomum que micos, pássaros, cobra-cipó, sapos, aranhas, ratos, saruês e outros bichos venham, volta e meia, fazer uma sondagem, buscar comida ou mesmo abrigo na minha casa. Uns morrem no chinelo, outros espanto com a vassoura, outros, mantida uma certa distancia, espero a hora de convida-los a se retirarem, como numa madrugada em que um saruê resolveu dormir perto de mim, dentro do meu guarda-roupa, na maior folga do mundo.

No caso do saruê esperei o dia amanhecer e pedi ajuda aos vizinhos para providenciarem a sua retirada. Manhã movimentada, muitos gritos de “mata mata, ele come galinha” facilmente derrubados com a minha argumentação óbvia: “deixa ele vivo, a gente também come galinha. E ademais, a única plumada que tem aqui sou eu e a mim ele não fez nada”. Contexto acatado, ânimos acalmados e o bicho foi embora, ileso, com direito a uma espreguiçadela bem na porta de saída. Provavelmente aquela não fora a primeira noite. Sua atitude mostrou que me conhecia muito mais que eu a ele. Sabia que sou de paz e o defenderia. Estava numa boa.

Mas espera ai, eu disse ele o saruê, não os ratos.

Ah, eu detesto rato. Até já matei um e admito, no medo. A aversão é tanta que, se na madrugada, eu precisar levantar para um simples copo de água e suspeitar que existe um na minha cozinha, morro de sede, mas não enfrento o bicho. Além do medo, a birra também é grande, e até faço campanha contra eles. Já distribui gratuitamente veneno contra rato para meus vizinhos humanos, montei pequenas cartilhas falando o mal que ele faz e ainda protagonizo escândalos quando dou de cara com um. Estou sempre em busca de venenos aniquiladores e aberta a novas propostas de extermínio para este dito-cujo.

Mas eis que o melhor desta batalha aconteceu quando, foliando o catalogo de um vendedor deparei-me com uma peçonha digna de um grande algoz. O tal anuncio mostrava um veneno que tinha como atrativo, não o cheiro de queijo ou outra comida. Melhor que isto, ele cheirava a sexo. Explico: o veneno era um afrodisíaco capaz de enlouquecer machos e fêmeas para o amor.

Noite estampada no céu, arma inusitada na mão, mal me continha para testar a eficácia do produto. E assim foi.
Colocado em pontos estratégicos o(a) rato(a) deve ter ficado tão enlouquecido(a) que trocou a rodelinha de lugar várias vezes. Provavelmente, enamorado(a), deu-lhe pequenas mordidelas e por isto a arrastou para cantos libidinosos. Deve ter brincado, abraçado, jurando estar amando e sendo amado. Foi, voltou, se esfregou, amassou, num silêncio que eu arriscaria dizer, amoroso.

Enquanto se esbaldava e se deliciava, entorpecido na dedicação, engoliu pedaços da sua nova paixão. O tóxico então, caiu na corrente sangüínea e como num amor louco, parou seu coração e ele morreu embriagado de paixão e tesão. Quando pela manhã encontrei o bicho morto ao lado do seu amor-veneno fiquei pensando que ele ou ela morreu feliz. Posso jurar mais? O bicho sorria!

Na loja, quando me pedem um “remédio pra rato” e conto a história do falecimento lá em casa, encontro nos meus clientes o mesmo sorriso macabro que o meu. Todo mundo gosta de ver o circo pegando fogo, ainda mais se tiver um rato dentro. E cientificamente falando, - já que cientistas usam ratos para testar a reação humana – a experiência comprova a citação: “cupido é só libido; o resto é literatura”.

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TRAVESSIA



Pra ir trabalhar, atravesso a ponte Marechal Hermes que liga Buritizeiro a Pirapora, todos os dias. E hoje ela estava congestionada. O rio, lindo, impávido colosso, brilhava sob muitos pés. No céu, tem o sol dourando a pele da gente. E a pele não arde, porque tem o vento lambendo a manhã e os corpos. E os “bom dia”, os “oooi”, os deliciosos “eeei menina!” é a parte musical.

Quando comecei a travessia, pensei em Chico que ontem me disse estar triste, em Tião abrindo sua caixa postal e dando de cara com um monte de gente e Isabela, lá em Paris sentindo-se meia Baronesa de Münchausen. Será que topariam atravessar para o outro lado de bicicleta, como eu?

É porque passar na ponte de bicicleta não é coisa pra qualquer um. Pra poder seguir em frente, tem que ter força nos braços, nas pernas e já se integrar às tábuas balançando e ao rio descendo. Senão não dá conta. A pé também é difícil. Veja só, o turista. Diga-se de passagem, que é só bater o olho, pra saber quando é “gente de fora”. Primeiro, porque ele se veste de férias com a máquina fotográfica no pescoço. Segundo, ele entra na ponte achando que vai atravessar os 694 metros de tábua meia solta, meia presa, como quem anda na rua. E não vai. Metade do caminho, lá está um sujeito, mais desbotado do que é, vestindo tênis e meia três - quarto, agarrado ao beiral de ferro, sem saber se vai ou se fica. Ele está tonto. O que antes era aventura, naquela altura do campeonato, vira superação.

Ah, mas esta palavra é lá pros lados de lá, pelas bandas de Tião! Vejo-o diante da sua caixa de mensagens, costurando a colcha da rede mundial, com histórias de gente de todo jeito. Deve ter gente ferida, gente alegre, gente que quer ferir só porque não é alegre. E depois disto tudo, ver-se a si próprio. Dia após dia. É a tal superação.

Mas quem tinha de ir além de si mesmo, era Chico. Devia estar aqui pra ver Fiote cantar “Bom Dia geeennnte!” pra todo mundo na ponte. Ele ia esquecer seus problemas, ao ver aquele menino grande, quase da sua idade, mas que a deficiência não deixou crescer, fazendo a travessia, de lado, pernada a pernada, saltitando atrás da mãe. Com os olhos tão azuis quanto o céu, Fiote segue uma senhora de longos cabelos presos em rabo de cavalo. Ela vai séria, reta, nem olha pras tábuas, nem pra trás, nem pro rio, nem vê o povo, enquanto ele, distribui “cocão” na cabeça dos pescadores e repetindo, na voz embolada, o sorriso do “Bom Dia geeennnte!”.

O pescador que apela e jura que um dia vai revidar o toc-toc na muleira, busca o Dourado. E lá está Isabela na terra de ceux aimants, assustada pelo poder que os bichos lá ganharam. Bicho que o povo agora se enamora, porque nem no anzol, ninguém pega mais ninguém. Mas eu queria que ela estivesse aqui para poder ver, o que eu vi, nos olhos de um homem bacana, no domingo, diante do bailar verde do meu quintal, a frase que as estatísticas de Paris deixaram de fora. Com a voz firme, o pedido de olha no meu olho, seguros na minha mão, perguntou-me se eu gostaria de ser a sua namorada. Se eterna, só o tempo. De perene, o homem que acredita que o amor ainda tem sua razão de existir mesmo depois que a gente cresce.

Penso de novo que Paris é bonito, que Tião tá costurando muito, que Chico devia viajar e que Isabela podia acreditar no amor. O celular apita a mensagem, é dele: “Tenha um bom dia, meu bem!”

Queria que estivessem aqui, sobre a Ponte São Marechal Hermes
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